Sua obra no contexto do Séc. XVIII Francês
1.Introdução:
Em 15 de novembro de 1956 iniciava-se um processo criminal em Paris, o réu, Donatien Alphonse François, ou melhor, o Marquês de Sade, também conhecido como Divino Marquês por uma pequena parcela de intelectuais e artistas. Tal processo fora iniciado devido à tentativa de um editor - Jean Pauvert - de lançar em edição as obras completas do Marquês. O tribunal mostrava-se contrário, porquanto desde o início do século XIX as obras mais picantes de Sade eram tidas como capazes de destruir o corpo e a alma de qualquer leitor. Entretanto depois de as acusações serem apresentadas, aceitou-se o contato do público com a inteligência selvagem do Marquês. De acordo com sua filosofia alternativa, escrita durante o período que esteve recluso, nenhum Deus, moralidade, afeição e esperança deveriam existir, apenas a extinção humana num delírio erótico terminal. O homicídio, a sodomia, o incesto etc., seriam os meios capazes para a obtenção desse fim. A partir disso, considerou-se que o fulcro da obra sadeana fosse a perversão, porém, o constante aparecimento da Providência - Deus - em todas as suas obras, desmascara o verdadeiro ponto principal: o ateísmo intelectual, sendo o único Deus a natureza, para a qual segundo Sade, o bem e o mal não são aspectos antagônicos, mas sim essenciais para a manutenção do equilíbrio. | |
2. Período de Formação
Não obstante ocupado em escrever peças, em 1782 Sade já se preocupava em expor com maior clareza sua produção como filósofo ateu. Em Diálogo entre um Sacerdote e um Moribundo observam-se características já realmente marcantes do modo sadeano de pensar e ver o mundo: após morto, o moribundo descrente é tomado por seis belas mulheres que passam a corrompê-lo, "ensinando-lhe a corrupção da natureza". O moribundo, nesse caso, observa que o crime e a virtude são meros processos da natureza, um argumento a partir do qual Sade desenvolveu em termos como vício e virtude, ou crime e moralidade, eram sem sentido no universo mecanicista de La Mettrie, para o qual uma explicação racional do universo pode ser compatível com a idéia de Deus. Foi essa "fraqueza" particular do materialismo de La Mettrie que Sade procurou desenvolver. As conseqüências de rejeitar a crença numa ordem divina trazem um substituto para Sade, a natureza passa a ocupar o lugar de Deus. A única moralidade era a da natureza, a qual não ligava para o absurdo das convenções humanas segundo as quais certas coisas são tidas como criminosas, diferente do que ocorre no restante do universo animal. Logo, todos os extravagantes desejos sexuais de Sade tornam-se razoáveis e até racionais. Mesmo sem procriação, e com a conseguinte extinção da humanidade , não haveria diferença para a natureza, porquanto os cadáveres entrariam em decomposição, fornecendo à natureza energia para uma nova forma de vida.
3. Escritos da Bastilha
"As grandes guerras que impuseram tão pesado fardo a Luís XIV esgotaram tanto os recursos do tesouro quanto do povo. Mas mostraram também a um bando de parasitas o caminho da prosperidade. Tais homens estão sempre a espreita de calamidades públicas, que não se preocupam em aliviar, antes procurando criá-las e alimentá-las a fim de que possam tirar proveitos dos infortúnios alheios."
Entre os homens supracitados, Sade tirou seus quatro heróis ficcionais (em sua maior parte religiosos) que iriam recolher-se durante o inverno no castelo de Silling, junto a uma série de pessoas visando dar-lhes toda a assistência em matéria de libertinagem. Esses 120 dias dividem-se de acordo com os tipos de vícios a serem executados: paixões simples, paixões complexas, paixões criminosas e paixões assassinas. Mais do que o relato incessante de desvios sexuais, é a criação, no romance, onde Sade parece desenvolver seu próprio mundo, onde o prisioneiro é o senhor. Um lugar onde "já não há repressões, já não há obstruções. Não há nada a não ser a consciência.". Só a primeira parte do livro foi escrita, o restante foi desenvolvido em anotações.
O romance seguinte, Aline e Valcour, o qual ocupou os três próximos anos de sua prisão, tem a forma de uma troca de cartas entre o herói e a heroína do título, cuja felicidade é frustrada pela determinação de seu pai em casá-la com um velho devasso. Se há alguma coisa no romance que seja peculiarmente sadeano, é a história de Sainville e Léonore, que é contada como uma longa interpolação no meio da tragédia de Aline e Valcour. Há muito que Sade se deixara fascinar pelas excentricidades tanto do comportamento social quanto sexual nas remotas partes do mundo. Ele se interessara particularmente pelos descobrimentos do capitão Cook. Tal esquema, possibilita a Sade se utilizar de aspectos culturais para tratar de novas perversões, entre elas, a antropofagia. Nesse romance, Sade repisa o tema do absurdo que para ele se constituía em tentar estabelecer códigos de moral, posto que para ele, o que é virtuoso em uma outra parte do mundo, é considerado abominável em outra.
Um ato virtuosos não era apenas sem sentido em si, mas, num universo regido pelo que os incultos chamam de vício, essa pretensa virtude era tratada com violência tanto pelo homem quanto pela natureza. Há dois aspectos dedutíveis a partir disso:1) a moralidade e a religião são negadas pelos próprios princípios da natureza; 2) os sofrimentos da virtude são permitidos por Deus para serem recompensados na outra vida. Apesar disso, a vitória da virtude é retratada no próximo livro de Sade, Justine, Os Infortúnios da Virtude. Entretanto, ironicamente, também pode se observar o prazer encontrado em grande parte das personagens em maltratar uma garota virtuosa e religiosa. Independente da intenção verdadeira do autor, ele chegou através do argumento antireligioso a um ponto que os pensadores do Iluminismo pouco trataram. Insistia que a moralidade, separada da religião, feneceria; sendo então impossível haver leis superiores às da natureza e do instinto às quais o moralista pudesse apelar. Sugerir que um instinto é mais criminoso ou virtuoso que o outro é um absurdo lógico. A humanidade deve escolher entre dois destinos alternativos. Deus e a moralidade devem ser dispensados ou mantidos. Um mundo sem Deus e, conseguintemente, sem qualquer justificativa para a moralidade, era precisamente o que a ficção de Sade buscava relatar. A moralidade não é indipensável, mas, se deve ser mantida, só o pode na base da autoridade divina.
Semelhante à Justine, também são as pequenas histórias intituladas Contos de Amor, nos quais Sade aproveita-se consideravelmente de seus conhecimentos acerca da tradição e do quotidiano franceses. Tanto Justine como os contos supracitados não trazem os excessos explícitos de Os 120 Dias, entretanto, além dessa escrita pública, Sade continuava a produzir textos que denunciavam claramente todas as formas de religião e virtude, admirando apenas a natureza, entre eles, A Verdade.
No ano de 1788 começaria o ataque direto à autoridade real. A aristocracia francesa, que perdeu para a coroa boa parte do seu poder político, juntava esforços para restaurar sua condição. Se a nobreza queria reforma, os comuns também a queriam. Quando o rei concedeu que empreendesse a reforma, os comuns imediatamente exigiram paridade de representação com a nobreza. Em janeiro de 1789 houve uma eleição, já sob o sistema reformado, na qual aproximadamente um quarto da população votou. Os Estados Gerais foram determinados diante da autoridade real. Em junho de 1789,estava claro que Luís XVI já não controlava a avalanche democrática. Suas tropas moveram-se em direção a Paris, tendo recebido ordens para dispersar a multidão envolvida no tumulto da Praça Luís XV. |
A situação política complicava-se ainda mais devido ao fracasso da economia, ao exorbitante aumento do pão, à invasão de Paris por trabalhadores famintos que ali esperavam achar meios de sobrevivência. Inicialmente, os burgueses e o povo tinham objetivos bem diferentes. Mas, no final de junho de 1789, apenas dias seriam necessários para a realização das ambições políticas ca classe média.
Sade, acompanhava todo o movimento de sua cela na Bastilha, A Torre da Liberdade, chegando a crer que fosse libertado, para tal, improvisa um alto-falante e se dirige à multidão ao redor da Torre, insistindo para que assaltassem a Bastilha antes que atrocidades iminentes se efetuassem. Porém, dez dias antes da queda da Bastilha, o marquês é removido para o manicômio de Charenton, sendo os outros prisioneiros postos em liberdade.
Em 1790 a primeira Assembléia Nacional reuniu-se em Paris. O marquês não era o tipo de figura que suscitasse simpatia entre os revolucionários. Mesmo sem nenhuma esperança de ser libertado, em 2 de abril viu-se livre, posto que fora emitido um ato de anistia aos presos pelo regime anterior por força das lettres de cachet. Nesse caso, sua primeira urgência era a sobrevivência financeira, os primeiros atos revolucionários haviam secado suas fontes.
A riqueza e o título da família Sade eram perigosas, tornando-o suspeito aristocrata; logo Sade viu-se obrigado a trabalhar, voltando-se ao teatro, com a vantagem de possuir um grande número de peças já escritas. Submetia-se peças ao novo regime através da leitura da mesma diante dos membros de um teatro, o qual posteriormente procederia uma votação. Alguma peças foram aceitas, mas houve adiantamentos e nenhuma peça foi produzida. A penas a peça O Subornador fora realmente encenada, mas altamente vaiada por um grupo de revolucionários. O único modo de Sade ganhar dinheiro seria através de suas antigas rendas.
Para tanto, Sade começou a manter correspondência com seu antigo advogado Gaufridy, tentando reaver alguns lucros sobre suas terras em La Coste. Em suas cartas dizia adorar o rei, mas execrar os abusos cometidos durante o antigo regime. A única revolução a que daria o seu consentimento voluntário seria a que propusesse uma constituição do tipo inglês. Sendo aristocrata, a idéia de se aliar a população revolucionária - cujos integrantes eram descritos em suas cartas como idiotas ou criminosos vulgares - parecia-lhe extremamente desagradável. Entretanto, em uma correspondência de julho de 1791, observa que também há os revolucionários burgueses, para os quais a revolução seria apenas um meio de promover suas próprias carreiras. Acerca desses, Sade escreve posteriormente em Juliette, dizendo que não tem o menor interesse em qualquer tipo de bem-estar além do próprio, sendo a revolução apenas o meio de transferir os poderes do governante atual para eles. É óbvio que Sade não poderia emitir tais opiniões publicamente, logo, passa a simular respeito por organismos públicos como a Assembléia Nacional, tomando suas primeiras precauções contra a possibilidade de ser denunciado como contra-revolucionário.
Sade vivia na Section de Piques, tornando-se ativo e posteriormente secretário da mesma . Também tornou-se membro da Guarda Nacional. Era altamente solicitado como autor e como secretário, tendo sido nomeado pela seção comissário para a administração de hospitais. Através desse estratagema, Sade passou a gozar de certa influência e prestígio.
Pensando no controverso caráter do marquês, é curiosa sua observação acerca dos massacres de setembro de 1792, porquanto ele poderia ter participado a fim de dar liberdade a seus desejos recônditos. Em vez disso, observou que o comportamento daqueles que propunham ser os líderes do povo, dizendo que o que realmente ocorria era uma fome desmesurada de poder, assim como um desejo de violência. Vista a experiência de Sade na revolução, não é de todo improvável que os horrores descritos em Juliette sejam baseados nas violências de setembro de 1792.
Em julho de 1793 Maximilien Robespierre ingressa no Comitê de Segurança Pública, suas palavras adquirem grande autoridade sobre o espírito de muitos franceses. "A essência do republicanismo é a virtude", "a Revolução é a transição de um governo de crime para um governo de justiça" e "a natureza é o verdadeiro templo do sacerdote supremo; o universo é o seu templo, e a conduta virtuosa é o meio pelo qual ele é adorado." são frases suas. Apesar disso, a guilhotina é utilizada em grande escala, visando exterminar todos os inimigos da nova sociedade. Nesse contexto, Sade recebeu um mandato do Comitê Revolucionário, o qual ia julgá-lo por atividades contra-revolucionárias. Motivo de acusação: procurar emprego na guarda real em 1791. Foi inicialmente aprisionado no convento das Madelonettes, tendo sido freqüentemente transferido à espera de julgamento. Recebeu acusação formal, sendo finalmente transferido para a casa de detenção em Picpus; sua cela possuindo visibilidade para o espaço em que a guilhotina funcionava. Escreveu a Gaufridy, "vi mais de 1000 homens e mulheres encontrarem a morte para satisfazer o fanatismo de Robespierre pela virtude". | |
Bibliografia:
ALEXANDRIAN: Os Panfletos Revolucionários in História da Literatura Erótica. Rio de Janeiro. Rocco. 1994. 4ª ed. págs. 207 - 214.
DUEHREIN, E.: El Marques de Sade. Su Tempo. Su Vida. Su Obra. Madrid. s/d.
MORAES, E.: Sade: O Crime entre Amigos. in Libertinos e Libertários. São Paulo. Cia. das Letras. 1996. págs.: 245 - 254.
PRADO JR., B.: A Filosofia das Luzes e as Metamorfoses do Espírito Libertino. in Libertinos e Libertários. São Paulo. Cia. das Letras. 1996. págs.: 43 - 58.
SADE: Obras Diversas.
TROUSSON, R.: Romance e Libertinagem no séc. XVII na França. in Libertinos e Libertários. São Paulo. Cia. das Letras. 1996. págs.: 165 - 182.
Renato Pignatari Pereira
3º Ano - História/USP
renato_pignatari@yahoo.com.br