sábado, 2 de agosto de 2008

Queimar Sade? Parte II

DEVE-SE QUEIMAR SADE?
FAUT-IL BRÛLER SADE?
Simone de Beauvoir
1955

Parte II

Superficialmente, aos vinte e três anos, Sade assemelha-se a qualquer dos filhos-família de seu tempo; instruído, aprecia o teatro, as artes, a leitura; perdulário, mantém uma amante, a Beauvoisin, e freqüenta as casas de rendez-vous; casa-se sem entusiasmo, de acordo com a vontade paterna, com uma jovem da pequena nobreza, porém rica, Renée-Pélagie de Montreuil.

Nessa altura eclode o drama que repercutirá — e se repetirá durante toda a sua vida: casado em maio, é preso em outubro por excessos cometidos numa casa que visitava desde o mês de junho; os motivos dessa prisão são bastante graves para que Sade dirija ao governador do presídio cartas desvairadas, suplicando que sejam mantidos em segredo, do contrário, diz ele, estará irremediavelmente perdido. Este episódio nos faz pressentir que o erotismo de Sade já apresentava um caráter inquietador; hipótese confirmada um ano mais tarde, quando o inspetor Marais adverte as cafetinas para que não mais cedam mulheres ao marquês. Porém, o seu interesse reside menos nas informações que nos propicia do que na revelação que constituiu para o próprio Sade: no início de sua vida de adulto, ele descobre brutalmente que entre sua existência social e os prazeres individuais é impossível uma conciliação.

O jovem Sade nada tem de revolucionário, sequer de revoltado; está perfeitamente disposto a aceitar a sociedade como ela é; obediente ao pai , a ponto de receber dele, aos vinte e três anos, uma esposa que lhe desagrada, não encara outro destino além do que hereditariamente lhe está indicado: será marido, pai(3), marquês, capitão, castelão, tenente-general; não deseja absolutamente renunciar aos privilégios que sua condição e a fortuna da esposa lhe garantem.
Madeleine ( Kate Winslet) and Sade (Geoffrey Rush) in Quills


Contudo, isso não mais o satisfaria; oferecem-lhe ocupações, cargos, honras, mas nenhum empreendimento, nada que interesse, que divirta, que agite; não quer ser apenas o personagem público cujas atitudes todas são comandadas pelas convenções e pela rotina, mas também um indivíduo vivo e, se há um lugar onde este possa afirmar-se, não é o leito onde o acolhe fatalmente uma esposa virtuosa, mas a casa escusa onde compra o direito de desencadear seus sonhos. Um desses sonhos é comum à maioria dos jovens aristocratas desse tempo; rebentos de uma classe decadente, que ainda não há muito detinha um poder concreto, mas que não mais possui qualquer influência real sobre o mundo, tentam ressuscitar simbolicamente, no segredo das alcovas, a condição de que conservam a nostalgia, a do déspota feudal solitário e soberano; as orgias do Duque de Charolais, entre outras, eram famosas e sanguinolentas, e é dessa ilusão de soberania que Sade, por sua vez, tem sede. O que se deseja quando se goza? Que tudo o que nos cerca apenas se ocupa de nós, pense em nós, se interesse apenas por nós... não há homem que não queira ser déspota quando... A embriaguez da tirania leva imediatamente à crueldade, porque o libertino, molestando o objeto de que se serve, experimenta todos os encantos que um indivíduo nervoso prova ao fazer uso das suas forças; domina, é tirano.

Na realidade, é uma proeza bem mesquinha chicotear, mediante retribuição ajustada, algumas mulheres; e que Sade atribua a isso tamanha importância é um fato que o põe desde logo em pauta. Surpreende que fora das paredes de sua “pequena casa” ele não pense de forma nenhuma em fazer uso das suas forças; não se lhe percebe nenhuma ambição, nenhum espírito de iniciativa, qualquer vontade de poder e não estou mesmo longe de imaginá-lo covarde. Não há dúvida de que ele sistematicamente imputa aos seus heróis todas as características que a sociedade considera como taras; mas descreveu Blangis com tal complacência que nos assiste o direito de supor que se tenha projetado neste, e tais palavras adquirem o tom direto de uma confissão: Um menino decidido teria assustado aquele colosso... mostrava-se tímido e covarde, e a idéia da luta menos perigosa, mas em igualdade de forças, levá-lo-ia a fugir até o fim da terra. Que Sade, ora por estouvamento, ora por generosidade, tenha sido capaz de extravagantes audácias, não contradiz a hipótese de uma timidez medrosa em relação aos seus semelhantes, e mais geralmente diante da realidade do mundo. Se fala tanto na fortaleza de alma, não é que a possua mas porque a inveja: na adversidade, lastima-se, agita-se, desnorteia-se. O temor à falta do dinheiro, que incessantemente o persegue, traduz uma inquietação mais difusa: ele desconfia de tudo e de todos porque se sente inadaptado. E o é: comporta-se desordenadamente, acumula dívidas, exalta-se despropositadamente, foge ou rende-se sem critério; cai em todas as armadilhas. Passa a desinteressar-se desse mundo a um tempo aborrecido e ameaçador que nada lhe propõe de válido e ao qual pede demais; irá buscar, alhures, a sua verdade.

Quando escreve que a paixão do gozo subordina e reúne ao mesmo tempo todas as outras, dá-nos exata descrição de sua própria experiência; subordinou a sua existência ao seu erotismo porque este se lhe afigurou a única realização possível desta existência; se ele se lhe devota com tal ímpeto, imprudência e obstinação, é porque concede maior importância às histórias que através do ato voluptuoso ele próprio se relata do que aos acontecimentos contingentes: escolheu o imaginário.

Decerto, começou por julgar-se seguro em seus paraísos quiméricos que um compartimento estanque parecia separar do universo do sério. E talvez não houvesse estourado nenhum escândalo, não passasse de um devasso comum, conhecido nos locais especializados pelos gostos um tanto especiosos; nessa época, havia muitos libertinos que se entregavam às piores orgias, impunemente; mas parece-me que no caso de Sade o escândalo era fatal; há certos “pervertidos sexuais” aos quais se aplica exatamente o mito de Mr. Hyde e do Doutor Jekyll; esperam, de início, satisfazer os “vícios” sem comprometer seu personagem oficial; mas, caso sejam bastante imaginativos para pensar-se, acabam desmascarando-se por uma vertigem em que se misturam vergonha e orgulho: por exemplo, Charlus, apesar dos seus ardis e pelos seus próprios ardis. Em que medida houve provocação na imprudência de Sade? É impossível dizê-lo. Sem dúvida, quis afirmar a radical separação entre sua vida familiar e seus prazeres privados; e, decerto, não podia contentar-se com esse triunfo clandestino senão levando-o ao ponto-limite onde ele ultrapassava a clandestinidade. Sua surpresa se assemelha a de uma criança que bate num vaso até quebrá-lo. Brincando com o perigo, julgava-se ainda soberano; mas a sociedade espreitava-o; ela recusa qualquer partilha, reclama cada indivíduo sem reserva, e não tardou a apoderar-se do segredo de Sade e a integrá-lo na figura do crime.

Sade começou reagindo por súplicas, humildade e vergonha; pediu que lhe permitissem rever a esposa, acusando-se de tê-la ofendido gravemente; solicita um confessor e abre-lhe a alma. Isto não é pura hipocrisia; de um dia para outro operou-se uma terrível metamorfose: comportamentos naturais, inocentes, que até então não passavam de fontes de prazer, ei-los convertidos em atos puníveis, e o moço gentil transformou-se em cão sarnento. É provável que ele tivesse conhecido desde a infância — talvez através das suas relações com a mãe — o odioso dilaceramento do remorso; porém o escândalo de 1763 reaviva-o de maneira dramática: Sade pressente que doravante será um criminoso para o resto da vida. Pois atribui demasiado valor às suas diversões para encarar, por um instante sequer, a possibilidade de renunciar a elas, e não tardará a libertar-se da vergonha pelo desafio. É notável que o primeiro dos seus atos deliberadamente escandalosos se situe logo após a detenção: a Beauvoisin acompanha-o ao palácio de La Coste, e sob o nome de Mme de Sade dança e representa diante de toda a nobreza provençal, enquanto o capelão do marquês se vê constrangido a uma tácita cumplicidade.

A sociedade negou-lhe qualquer liberdade clandestina, pretendeu socializar o seu erotismo: inversamente, a vida social do marquês desenrolar-se-á doravante num plano erótico. Visto não ser possível separar tranqüilamente o mal do bem, para se entregar alternativamente a um e a outro, é em face do bem e mesmo em função dele que cumpre reivindicar o mal. Que a sua atitude ulterior tem suas raízes no ressentimento, Sade no-lo confiou em várias oportunidades: Há almas que parecem endurecidas à força de serem suscetíveis de emoções e que vão às vezes demasiado longe: o que nelas tomamos por indiferença e crueldade não passa de um modo só delas conhecido de sentir mais vivamente que as outras(4).

E Dolmancé(5) imputa seus vícios à maldade dos homens: Foi a ingratidão deles que secou meu coração, sua perfídia que destruiu em mim as virtudes funestas para as quais eu talvez tivesse nascido como vós... A moral demoníaca, que mais tarde ele erigirá em teoria, é inicialmente para Sade uma experiência vivida.

Foi através de Renée-Pélagie que Sade conheceu toda a sensaboria da virtude e o seu tédio: ele os confunde numa aversão que só um ser de carne e osso pode suscitar; mas o que também aprende de Renée com delícia, é que, sob a sua figura concreta, carnal, individual, o bem pode ser vencido em combate singular; a esposa não é para ele uma inimiga, mas, como todos os personagens de esposas que ela lhe inspirou, uma vítima de eleição: a que se deseja cúmplice. As relações de Blamont com a esposa refletem sem dúvida com bastante exatidão as de Sade com a marquesa; Blamont se compraz em acariciar a esposa no instante em que trama contra ela as mais negras maquinações; infligir um gozo — Sade compreendeu-o cento e cinqüenta anos antes dos psicanalistas, e são numerosas em sua obra as vítimas submetidas ao prazer antes de torturadas — pode ser uma violência tirânica, e o carrasco disfarçado em amante encanta-se com ver a apaixonada crédula, desfalecida de voluptuosidade e gratidão, confundir a maldade com a ternura.
Sade (Geoffrey Rush) and Madeleine ( Kate Winslet) in Quills

Unir alegrias tão sutis à realização de um dever social foi, decerto, o que animou Sade a dar três filhos à esposa. Mas obteve ainda outras vantagens: a virtude tornou-se aliada do vício e sua escrava. Durante anos, Mme de Sade acobertou as culpas do marido, ajudou-o corajosamente a fugir de Miolans, favoreceu o caso da irmã com o marquês e depois as orgias do castelo de La Coste; chegou a tornar-se ela própria criminosa quando, para anular as acusações de Nanon, escondeu talheres de prata em sua bagagem. Sade nunca lhe manifestou qualquer reconhecimento, e a idéia de gratidão é uma das que ele enterra mais obstinadamente; sem dúvida, experimentava por ela essa amizade ambígua que todo déspota dedica ao que é incondicionalmente seu. Graças a ela, não só pôde reconciliar o papel de marido, pai e fidalgo com seus prazeres, como ainda estabeleceu a irrecusável superioridade do vício sobre a bondade, a dedicação, a fidelidade e a decência, e ridicularizou maravilhosamente a sociedade, submetendo a instituição do casamento e todas as virtudes conjugais aos caprichos de sua imaginação e de seus sentidos.

Se Renée-Pélagie é o êxito mais triunfante da Sade, Mme de Montreuil resume a sua derrota; ela encarna a justiça abstrata e universal contra a qual o indivíduo se despedaça; é contra ela que o marquês reclama mais acerbamente a aliança da esposa: ganhando o processo aos olhos da virtude, a lei perde muito do seu poder; pois suas armas mais temíveis não são a prisão e o cadafalso, mas o veneno com que infecta os corações vulneráveis. Sob a influência da mãe, Renée perturba-se; a jovem freira assusta-se; a sociedade hostil insinua-se no lar de Sade, arruína-lhe os prazeres, ele mesmo sofre sua influência; apostrofado, amaldiçoado, duvida de si; e aqui está o supremo crime cometido por Mme de Montreuil contra ele: um culpado é primeiramente um acusado; foi ela que fez de Sade um criminoso.

Eis por que através dos seus livros nunca mais deixará de ridicularizá-la, de aviltá-la, de torturá-la; nela ele assassina suas próprias culpas. É possível que a hipótese de Klossowski tenha fundamento e que Sade tenha abominado a própria mãe: assim o sugere a natureza singular da sua sexualidade; mas essa inimizade talvez não permanecesse tão viva se a mãe de Renée lhe não houvesse tornado odiosa a maternidade; e, para falar a verdade, ela representou na existência do genro um papel assaz importante e atroz para permitir supor que dirigia esse ódio tão-somente contra ela. É de qualquer modo a ela que a filha brutalmente injuria nas últimas páginas da Philosophie dans le boudoir.



3.Klossowski admira-se de que Sade lhe não manifeste nenhum rancor; mas Sade não detesta espontaneamente a autoridade; admite que um indivíduo use e abuse de seus direitos. Herdeiro dos bens paternos, apenas começa por se opor à sociedade num plano individual e afetivo, através das mulheres: esposa e sogra.

4.Aline et Valcour.

5.La philosophie dans le boudoir.

continua...