DEVE-SE QUEIMAR SADE?
FAUT-IL BRÛLER SADE?
Simone de Beauvoir
1955
FAUT-IL BRÛLER SADE?
Simone de Beauvoir
1955
Parte VI
Seu intuito seria apenas escandalizar? Em 1795, escreveu: Vou oferecer-vos grandes verdades; serão ouvidas; serão refletidas; se nem todas agradarem pelo menos restarão algumas e terei contribuído em algo para o progresso das luzes e ficarei satisfeito. E em La nouvelle Justine: É mau amar os homens ocultando-lhes verdades tão essenciais, quaisquer que sejam os resultados.
Depois de haver presidido a Section des Piques e redigido em nome da coletividade discursos e petições, pôde, em suas horas mais otimistas, gabar-se de ser um dos porta-vozes da humanidade; da sua experiência retinha então, não o aspecto maldito mas a autêntica riqueza. Esses sonhos logo se dissiparam, mas é excessivamente simples enclausurar Sade no satanismo; nele a sinceridade mistura-se inextrincavelmente à má-fé; agrada-lhe que a verdade escandalize, mas também, se se resolve ao escândalo, é porque este manifesta a verdade; no momento em que reivindica arrogantemente seus erros, dá a si mesmo razão. Ao público que deliberadamente ultraja, quer também transmitir uma mensagem: seus escritos refletem a ambivalência de sua relação com o mundo dado e com outrem.
O que mais deveria surpreender é o modo de expressão que ele escolheu; ele, que cultivou tão ciosamente sua singularidade, seria de esperar que procurasse também traduzir sua experiência numa forma singular, como fez, por exemplo, Lautréamont. Mas em primeiro lugar o século XVIII oferecia poucas possibilidades líricas; Sade odiava a enfadonha sensibilidade que então se confundia com a poesia; os tempos não estavam maduros para um “poeta maldito”. E nada predispunha Sade a grandes audácias literárias; um verdadeiro criador deve — pelo menos em certo plano, em certo momento — ter-se radicalmente libertado do dado e emergir para além dos outros homens numa total solidão. Porém em Sade há uma íntima fraqueza que sua arrogância mal disfarça; a sociedade instalou-se em sua alma mesmo sob a figura da culpabilidade; não dispõe dos meios nem do tempo para reinventar o mundo, o homem e a si mesmo; tem demasiada pressa, pressa de se defender. Já disse que escrevendo ele procura antes de tudo conquistar uma boa consciência; para isso tem de obrigar os outros a absolvê-lo e mesmo a aprová-lo; argumenta em vez de se afirmar, e para se fazer ouvir toma da sociedade formas literárias e doutrinas experimentadas. Formado por um século racionalista, nenhuma arma lhe parece mais segura que o raciocínio. Ele, que escreveu: Todo o princípio de moral universal é uma verdadeira quimera, submete-se docilmente às convenções gerais da estética contemporânea e às pretensões da lógica universal.
Assim se explicam sua arte e seu pensamento; quando se reivindica, é sempre tentando no mesmo movimento desculpar-se. Sua obra é um empreendimento ambíguo para ir até ao extremo do crime, abolindo a sua culpabilidade.
Portanto, é normal e evidente que o gênero favorito de Sade seja a paródia. Ele não procura instituir um universo novo: limita-se a levar ao ridículo, pela maneira como o imita, aquele que lhe é imposto, e começa por fingir acreditar nas quimeras que o povoam: a inocência, a bondade, a dedicação, a generosidade e a castidade; quando em Aline et Valcour, em Justine e nos Crimes de l’Amour pinta untuosamente a virtude, não se trata apenas de uma manobra prudente; as “gazes” com que veste Justine são mais que um artifício literário: cumpre dar uma realidade à virtude se queremos divertir-nos em humilhá-la. Defendendo seus contos da pecha de imoralidade, Sade escreve hipocritamente: Quem se gabará de fazer ressaltar a virtude, quando as feições do vício que a cerca não são fortemente acentuadas? Mas ele entende tudo ao contrário: como conceder ao vício seu sabor se o leitor não é seduzido pela miragem do bem? É muito mais voluptuoso ludibriar as pessoas honestas do que escandalizá-las e, traçando no papel perífrases açucaradas, Sade saboreou os agudos prazeres da mistificação. Infelizmente ele diverte-se em geral mais do que nos diverte; quase sempre sua linguagem tem a mesma frieza e sensaboria dos contos edificantes que decalca, e os episódios desdobram-se segundo convenções igualmente sensaboronas. Contudo foi pela paródia que Sade logrou seus mais vibrantes êxitos artísticos. Precursor do romance negro, como notou Maurice Heine, ele é demasiado racionalista para se abismar no fantástico; quando se abandona às extravagâncias da imaginação, não sabemos o que mais admirar nele: se a veemência épica ou a ironia; o milagre é que esta se revela bastante sutil para não arruinar seus delírios; pelo contrário, empresta-lhes uma seca poesia que os defende contra nossa incredulidade. Este sombrio humor que ele sabe na oportunidade voltar contra si mesmo, é mais que um simples processo; confundindo a vergonha e o orgulho, a verdade e o crime, Sade é habitado pelo gênio da contradição; é quando escarnece que ele é mais sério, e quando sua má-fé salta aos olhos é que ele é mais sincero; seus exageros ocultam freqüentemente ingênuas verdades, ao passo que através de raciocínios ponderados nos dá verdadeiras enormidades; seu pensamento emprega-se em frustrar quem quisesse fixá-lo e desse modo ele atinge seu objetivo que é preocupar-nos. Sua própria forma tende a desconcertar-nos; fala com voz monótona e enleada, e começa a entediar-nos quando de repente, amarga, sardônica, obscena, uma verdade ilumina esses nevoeiros que lhe ressaltam o fulgor brutal; então, na sua jovialidade e violência, na sua arrogância e crueza, o estilo de Sade torna-se o de um grande escritor.
Entretanto ninguém pensaria em colocar Justine ao lado de Manon Lescaut ou das Liaisons dangereuses. Paradoxalmente, é a própria necessidade da obra de Sade que lhe consignou os limites estéticos: ele não tomou diante dela o recuo indispensável a um artista; para enfrentar a realidade propondo-se recriá-la, faltava-lhe o afastamento necessário; ele não enfrentou a si mesmo: limitou-se a projetar para fora de si seus fantasmas; suas narrativas têm a irrealidade, a falsa exatidão e a monotonia dos devaneios esquizofrênicos: é para deleite próprio que as relata, e não se preocupa em impô-las a um leitor.
As resistências do mundo não são sequer evocadas, nem as outras, mais patéticas ainda, que Sade encontrava no segredo de sua alma. Cavernas, subterrâneos, castelos misteriosos, o arsenal do romance negro toma nele um sentido singular, simboliza o isolamento da imagem; a percepção remete à totalidade do dado, portanto aos obstáculos que este envolve; a imagem é perfeitamente dócil e plástica, nela só encontramos o que lá foi posto, é o domínio encantado de onde nenhum poder lograria desalojar o déspota solitário; é ela que Sade imita no momento em que pretende emprestar-lhe literariamente uma opacidade.
Por isso não se ocupa das coordenadas espaciais e temporais em relação às quais todo o acontecimento verdadeiro se situa; os lugares que evoca não são deste mundo, e mais do que aventuras são quadros vivos que neles se desenrolam; a duração não atua sobre o universo de Sade; não há futuro algum da sua obra nem na sua obra. Não só as orgias para que nos convida não se passam em parte alguma ou em tempo algum, como ainda, o que é mais grave, não põem ninguém em jogo; as vítimas são imobilizadas em sua abjeção lacrimosa, e os carrascos em seu frenesi; o autor sonha-se complacentemente neles em vez de lhes emprestar sua densidade viva; eles não conhecem o remorso, escassamente a saciedade, ignoram a mágoa, matam com indiferença, são abstratas encarnações do mal. Porém, não se erguendo sobre nenhum fundo social, familiar ou humano, o erotismo perde seu caráter extraordinário, deixa de ser conflito, revelação, experiência privilegiada; não descobre mais entre os indivíduos nenhuma relação dramática, antes regressa à sua rudeza biológica; como sentiríamos o antagonismo das liberdades estranhas, ou a queda do espírito na carne, se por toda parte, voluptuosa ou torturada, só a carne se ostenta? O próprio horror se extingue nos excessos em que nenhuma consciência está concretamente presente; se tanta angústia se exala de um conto de Edgard Allan Poe como, por exemplo, O Poço e o Pêndulo, é porque nós apreendemos a situação íntima do indivíduo; os personagens de Sade apenas os colhemos por fora; eles são tão artificiais e movem-se num mundo tão arbitrário quanto os pastores de Florian, e por isso essas negras bucólicas têm a austeridade de uma colônia nudista.
As devassidões que Sade põe em cena com minúcia esgotam sistematicamente as possibilidades anatômicas do corpo humano mais do que descobrem complexos afetivos singulares. Todavia, se ele falhou em dar-lhes uma verdade estética, pressentiu formas sexuais até então insuspeitadas, especialmente a que reúne ódio à mãe-frigidez-cerebralismo-sodomia-passiva-crueldade. A ligação da imaginação com o que chamamos vício, ninguém a destacou mais vigorosamente; e por instantes ele nos abre sobre a relação da sexualidade com a existência, bosquejos de surpreendente profundidade. Devemos então admirar nele no domínio da psicologia um verdadeiro inovador? Não é fácil decidir. Atribui-se sempre demais ou de menos a um precursor; como se há de medir o valor de uma verdade que, segundo a expressão de Hegel, não veio a ser? É da experiência que resume e do método que inaugura que uma idéia tira seu valor; mas uma fórmula cuja novidade nos seduz, se nenhum desenvolvimento a confirma, não saberemos que crédito lhe conceder; ficaremos tentados ou bem a aumentá-la com toda a significação de que ela ulteriormente se enriqueceu, ou pelo contrário a reduzir-lhe o alcance ao mínimo. Por isso diante de Sade o leitor imparcial hesita; por vezes ao virar uma página, encontra uma frase inesperada que parece abrir caminhos virgens, mas logo o pensamento se reduz, e onde esperava uma voz vibrante e singular, ouve apenas a fastidiosa repetição de Holbach e de La Mettrie. Observe-se, por exemplo, que em 1795 Sade escreve: O ato do gozo convém ser uma paixão que subordina a si todas as outras, porém que ao mesmo tempo as reúne. Não apenas na primeira parte deste texto Sade pressente o que se chamou o “pan-sexualismo” de Freud, senão que faz do erotismo a mola real das condutas humanas; na segunda parte, propõe, além do mais, que a sexualidade está carregada de significações que a ultrapassam; a libido está em toda parte e é sempre muito mais do que ela mesma: Sade, indubitavelmente, pressentiu esta grande verdade. As “perversões” que o vulgo considera monstruosidades morais ou taras fisiológicas, sabe ele que envolvem o que hoje se chamaria uma intencionalidade. À esposa ele escreveu que todo o capricho... remonta sempre a um princípio de delicadeza; e em Aline et Valcour, afirma: Os requintes vêm apenas da delicadeza; portanto é possível ter muitos, embora sejamos movidos por coisas que parecem excluí-la. Ele compreendeu também que nossos gostos são motivados, não pelas qualidades intrínsecas do objeto, mas pela relação que este mantém com o indivíduo; numa passagem da Nouvelle Justine tenta explicar a coprofilia: sua resposta é balbuciante, mas o que indica — utilizando canhestramente a noção de imaginação — é que a verdade de uma coisa reside não na sua presença bruta, mas no sentido que ela revestiu para nós no decorrer de nossa experiência singular. Intuições como estas autorizam-nos a saudar em Sade um precursor da psicanálise, mas infelizmente ele desvaloriza-as quando teima em repisar, segundo Holbach, os princípios do paralelismo psicofisiológico. Quando a anatomia for aperfeiçoada, facilmente se demonstrará por meio dela a relação da organização do homem com os gostos que o tiverem afetado.
A contradição é surpreendente na imprevista passagem das Cent vingt Journées onde ele se interroga sobre os atrativos sexuais da fealdade. Aliás está provado ser o horror, a imundície, a coisa repugnante que agrada quando se f... A beleza é a coisa simples, a lealdade é a coisa extraordinária, e as imaginações ardentes não há dúvida que preferem sempre a coisa extraordinária à coisa simples. Esta ligação que ele indica confusamente entre o horror e o desejo, gostaríamos que Sade a definisse; mas de repente ele chega a uma conclusão que anula a questão proposta: Todas essas coisas dependem da nossa conformação, dos nossos órgãos, da maneira como eles são afetados, e nós somos tão incapazes de mudar os nossos gostos nesse particular como de variar as formas dos nossos corpos.
Parece à primeira vista paradoxal que este homem, que tinha por si mesmo uma predileção tão ardente, haja apregoado teorias que negam à singularidade individual qualquer significação; reclama esforços para melhor se compreender o coração humano, tentou explorar-lhe os mais estranhos aspectos, exclama: Que enigma, o homem!, gaba-se: Você bem sabe que ninguém analisa as coisas como eu, e contudo faz-se discípulo de La Mettrie que, confundindo o homem com a máquina e a planta, reduz a nada a psicologia. Apesar de desconcertante, esta antinomia explica-se facilmente. Decerto é menos fácil ser um monstro do que algumas pessoas parecem acreditar. Fascinado como seu próprio mistério, Sade assusta-se com este e, em vez de exprimir, quer defender-se. As palavras que empresta a Blamont são uma confissão: Eu firmei meus desvios pelo raciocínio; não me detive na dúvida: venci, desarraiguei, destruí em meu coração tudo o que pudesse perturbar os meus prazeres. A primeira tarefa liberadora, como ele mil vezes repetiu, é triunfar sobre o remorso; e, tratando-se de repudiar qualquer sentimento de culpa, qual a doutrina mais segura do que a que solapa a própria idéia de responsabilidade? Mas seria erro grosseiro querer encerrá-lo nela; como tantos outros, ele baseia-se no determinismo para reivindicar sua liberdade.
Literariamente, esses discursos, tecidos dos lugares-comuns com que Sade entremeia suas bacanais, terminam por privá-los de toda a verossimilhança e vida; ele quase não mais se dirige ao leitor, mas a si mesmo; suas repetições têm o valor de um rito de purificação cuja repetição lhe é tão natural quanto a confissão ao devoto. Sade não nos dá a obra de um homem liberto, faz-nos participar do seu esforço de liberação. Mas é justamente por aí que ele nos prende: sua tentativa é mais autêntica que todos os instrumentos por ele utilizados. Se se desse por satisfeito com o determinismo que professa, deveria ter repudiado todas as suas preocupações éticas; mas estas se impunham com tal evidência que nenhuma lógica podia obscurecer. Para além das fáceis desculpas que fastidiosamente invoca, teima em atacar, em interrogar-se. E é graças a esta sinceridade obstinada que, não sendo um artista consumado ou um filósofo coerente, merece ser saudado como um grande moralista.
Extremado em tudo, Sade não podia acomodar-se aos compromissos deístas do seu século; é com uma declaração de ateísmo — o Diálogo entre um padre e um moribundo, que em 1782 inaugura sua obra. Já mais de uma vez, desde o Testament de Jean Meslier, aparecido em 1729, a existência de Deus havia sido negada; Rousseau ousara apresentar na Nouvelle Héloïse um ateu simpático, o Sr. de Wolmar, o que não impediu que, em 1754, o Padre Mélégan fosse metido na prisão por ter escrito Zoroastre, e La Mettrie tivesse de fugir para junto de Frederico II. Vulgarizado em 1770, por Holbach, no Systeme de la Nature, e também pelos libelos reunidos nesse mesmo ano sob o título de Recueil Philosophique, professado com veemência por Sylvain Maréchal, o ateísmo nem por isso deixava de ser uma doutrina perigosa num século que iria colocar o próprio cadafalso sob a égide do Ser Supremo. Arvorando-o, Sade comete deliberadamente um ato de provocação que é também um ato sincero. Apesar do interesse pelo estudo de Klossowski, acho que ele atraiçoa Sade, ao considerar sua apaixonada negativa de Deus como a confissão de uma necessidade; sustenta-se hoje facilmente o sofisma de que atacar Deus é afirmá-lo, mas, na verdade, trata-se de uma noção inventada pelos homens que o ateu contesta. Sade explicou-se claramente a esse respeito quando escreveu: A idéia de Deus é o único erro que eu não posso perdoar aos homens; e se essa mistificação é a que ele ataca desde logo, é porque, como bom herdeiro de Descartes, procede do simples para o complexo, da mentira grosseira para erros mais falaciosos; ele sabe que para libertar o indivíduo dos ídolos aos quais a sociedade o aliena, é preciso começar por garantir sua autonomia diante do céu; se o homem não houvesse sido aterrorizado pelo grande espantalho a que estupidamente rende culto, não teria tão facilmente sacrificado sua liberdade e sua verdade; escolhendo Deus ele renegou-se, e é esse o seu erro imperdoável. Na verdade, não há contas a prestar a nenhum juiz transcendente, não há outra instância além da Terra. Sade não ignora quanto a crença no inferno e na eternidade poderia exacerbar a crueldade; Saint-Fond encarece-lhes a esperança, a fim de gozar com os sofrimentos sem limites dos danados: diverte-se também a imaginar um demiurgo diabólico em que se encarnaria a maldade difusa da natureza, mas nem por um instante Sade mantém essas hipóteses, a não ser por meros jogos de espírito; não se reconhece nos personagens aos quais os atribui, e refuta-os pela boca dos seus porta-vozes; quando evoca o crime absoluto, pensa em mortificar a natureza e não em ferir Deus. O que podemos censurar às suas declamações contra a religião, é que elas reproduzem com fastidiosa monotonia lugares-comuns já gastos, e ainda assim lhe dá um tom pessoal quando, antes de Nietzsche, denuncia no cristianismo uma religião de vítimas, à qual na sua opinião deve ser substituída por uma ideologia da força.
De qualquer modo não se pode pôr em dúvida sua boa-fé. O temperamento de Sade é fundamentalmente irreligioso; não há nele qualquer vestígio de inquietação metafísica: está demasiadamente ocupado em reivindicar sua existência, para se interrogar sobre o sentido e o fim dela. Neste ponto suas convicções nunca foram desmentidas: se ajudou à missa e adulou um bispo, foi porque, velho e alquebrado, escolhera a hipocrisia, mas seu testamento é inequívoco. A morte o assustou, pela mesma razão que a decrepitude, como dissolução de sua individualidade: o medo do além nunca aparece em sua obra. Sade só quer ocupar-se dos homens, e tudo quanto não é humano lhe é estranho.
continua...