DEVE-SE QUEIMAR SADE?
FAUT-IL BRÛLER SADE?
Simone de Beauvoir
1955
FAUT-IL BRÛLER SADE?
Simone de Beauvoir
1955
"Voluntarioso, colérico, arrebatado, extremado em tudo, de um desregramento de imaginação quanto aos costumes como igual nunca houve, ateu até o fanatismo, eis em duas palavras como eu sou; e repito: matem-me ou aceitem-me assim,
porque eu jamais mudarei."
Eles escolheram matá-lo, primeiro a fogo lento no tédio dos calabouços, depois pela calúnia e pelo esquecimento; esta morte, ele próprio a desejara: Uma vez fechada a cova, plantem-lhe em cima bolotas, a fim de que com o tempo... desapareçam da face da terra os vestígios da minha sepultura, tal como eu espero que a minha memória se apagará da lembrança dos homens.
Das suas últimas vontades esta foi a única respeitada, porém muito cautelosamente: a lembrança de Sade foi desfigurada por lendas estúpidas(1); seu próprio nome se diluiu em palavras sombrias: sadismo, sádico; seus diários íntimos perderam-se, queimaram-se os manuscritos — os dez volumes das Journées de Florabelle por instigação do próprio filho — seus livros foram proibidos; embora, nos fins do século XIX, Swinburne e alguns curiosos se interessem pelo seu caso, só com Apollinaire lhe será dado um lugar nas letras francesas; ainda assim, está longe de tê-lo conquistado oficialmente: é possível folhear obras alentadas e minuciosas sobre “as Idéias do século XVIII”, mesmo sobre “a Sensibilidade do século XVIII”, sem nelas encontrar uma única vez o seu nome. Compreende-se que, em represália contra este silêncio escandaloso, os devotos de Sade fossem levados a saudar nele um genial profeta: sua obra anunciaria ao mesmo tempo Nietzsche, Stirner, Freud e o surrealismo; mas este culto, baseado como todos os cultos num equívoco, divinizando o “divino marquês” acaba, por seu turno, atraiçoando-o; quando desejaríamos compreendê-lo, prescrevem-nos adorá-lo.
Os críticos que não fazem de Sade um monstro nem um ídolo, mas apenas um homem, um escritor, contam-se nos dedos da mão. Graças a eles, Sade voltou enfim à terra, para nosso meio. Mas onde se situa ele justamente? Em que merece o nosso interesse?
Seus próprios admiradores reconhecem, de bom grado, que a sua obra é na maior parte ilegível; filosoficamente, só escapa à banalidade para afundar na incoerência. Quanto a seus vícios, tampouco espantam pela originalidade; nesse domínio Sade nada inventou e, nos tratados de psiquiatria, encontramos em profusão casos pelo menos tão estranhos quanto o dele. Na verdade, não é como autor nem como pervertido sexual que Sade se impõe à nossa atenção: é pela relação que criou entre estes dois aspectos de si mesmo. As anomalias de Sade adquirem valor desde o momento em que, em vez de suportá-las como um dado temperamento, elabora um imenso sistema a fim de reivindicá-las; inversamente, seus livros prendem-nos desde que compreendamos que, através das suas repetições, dos seus clichês, das suas inépcias, ele tenta comunicar-nos uma experiência cuja particularidade reside, todavia, no fato de ela querer-se incomunicável. Sade tentou converter o seu destino psicofisiológico numa opção ética; e desse ato, pelo qual assumia esta separação, pretendeu fazer um exemplo e um apelo: é por esse lado que sua aventura se reveste de larga significação humana.
Poderemos, sem renegar a nossa individualidade, satisfazer nossas aspirações à universalidade? Ou é apenas pelo sacrifício das nossas diferenças que poderemos integrar-nos na coletividade? Este problema interessa a todos nós.
Em Sade, as diferenças são levadas até o escândalo, e a imensidão do seu trabalho literário mostra-nos com que paixão ele desejava ser aceito pela comunidade humana: o conflito, a que nenhum indivíduo escapa sem mentir a si próprio, encontramo-lo nele na forma mais extrema. É o paradoxo, e em certo sentido o triunfo de Sade, que, por haver-se obstinado nas suas singularidades, nos ajuda a definir o drama humano em sua generalidade.
Para compreender a evolução de Sade, para apreender nesta história a parte de sua liberdade, para avaliar seus êxitos e derrotas, seria útil conhecer exatamente os dados de sua situação. Infelizmente, apesar do zelo de seus biógrafos, a pessoa e a história de Sade permanecem obscuras em muitos pontos. Não possuímos dele nenhum retrato autêntico, e as descrições que a seu respeito nos deixaram seus contemporâneos são muito pobres. Os depoimentos do processo de Marselha revelam-no, aos trinta e dois anos, “de bela aparência, rosto cheio, estatura média, vestindo um fraque cinzento e calções de seda cor de maravilha, com uma pluma no chapéu, a espada na cinta e uma bengala na mão”. Ei-lo aos cinqüenta e três anos, de acordo com um atestado de residência datado de 7 de maio de 1793: “Altura de cinco pés e duas polegadas, cabelo quase branco, rosto redondo, fronte descoberta, olhos azuis, nariz comum, queixo redondo”. Os sinais de 23 de março de 1794 são um pouco diferentes: “Altura de cinco pés, duas polegadas e uma linha, nariz médio, boca pequena, queixo redondo, cabelos loiro-acinzentados, rosto oval, fronte descoberta e alta, olhos azul-claros”. Perdera, então a sua “bela aparência”, tanto que escrevia alguns anos antes da Bastilha: Adquiri, por falta de exercício, uma corpulência tão grande que mal me posso mexer. É esta corpulência que começa por impressionar Charles Nodier quando encontra Sade, em 1807, em Sainte-Pélagie: “Uma obesidade enorme, que lhe embaraça os movimentos, impedia-o de mostrar um resto de graça e elegância de que se surpreendiam vestígios no conjunto das suas maneiras. Os olhos cansados conservavam, todavia, algo de brilhante e febril, reanimando-se de vez em quando, como a fagulha expirante de uma brasa extinta”.
Estes testemunhos, os únicos que possuímos, mal nos permitem evocar um rosto singular; houve quem dissesse(2) que a descrição de Nodier lembra Oscar Wilde envelhecido; mas também sugere Montesquieu, Maurice Sachs, lembrando em Sade qualquer coisa de Charlus; de qualquer modo é indício muito frágil. O mais lamentável ainda é que estejamos tão mal informados acerca de sua infância. Se tomarmos o relato de Valcour por um esboço de autobiografia, Sade teria conhecido desde cedo o ressentimento e a violência; criado junto de Louis-Joseph de Bourbon, que tinha justamente a sua idade, parece que se defendeu da arrogância egoísta do pequeno príncipe com fúrias e pancadas tão brutais que se tornou necessário afastá-lo da corte.
Não assiste dúvida de que sua estada no triste castelo de Saumane e na decadente abadia de Ébreuil lhe haja marcado a imaginação; mas, a respeito dos seus curtos anos de estudo, da passagem pelo exército, da sua vida de gentil mundano e libertino nada sabemos de significativo. Podemos tentar inferi-lo da sua obra para a sua vida, como, aliás, fez Klossowski, que vê, no ódio votado por Sade à mãe, a chave dessa vida e dessa obra; mas ele induziu esta hipótese do papel representado pela mãe nos escritos de Sade; limitou-se a descrever sob certo ângulo o mundo imaginário do marquês; não nos revelou as suas raízes no mundo real. De fato, é a priori, segundo esquemas gerais, que suspeitamos a importância das relações de Sade com o pai e com a mãe; em seu pormenor específico, elas nos escapam.
Quando começamos a descobrir Sade, ele já é homem feito e não sabemos como se tornou o que é. Semelhante ignorância impede-nos de apreciar suas tendências e atitudes espontâneas; a natureza da sua afetividade, os aspectos singulares da sua sexualidade surgem-nos como dados que simplesmente nos cumpre constatar. Desta deplorável lacuna resulta que a intimidade de Sade nos escapará sempre; toda explicação deixará atrás de si um resíduo que apenas sua história infantil poderia esclarecer. Contudo, esses limites impostos à nossa compreensão não devem desanimar-nos, porque Sade, como dissemos, não se cingiu a sofrer passivamente as conseqüências de suas primitivas opções; o que nele nos interessa, muito mais do que suas anomalias, é a maneira como as assumiu.
De sua sexualidade ele fez uma ética, e manifestou essa ética em uma obra literária; é por este movimento refletido da sua vida de adulto que Sade conquistou verdadeira originalidade. A razão dos seus gostos nos permanece obscura, mas é-nos possível perceber como converteu esses gostos em princípios e por que os afirmou até o fanatismo.
1.O velho Sade mandando que lhe trouxessem cestos de rosas, respirando-as voluptuosamente e mergulhando-as em seguida, com um riso sardônico, na lama dos regatos; os jornalistas de hoje ensinaram-nos como se fabrica esta espécie de histórias.
2.Desbordes: Le Vrai Visage du marquis de Sade.
continua...