DEVE-SE QUEIMAR SADE?
FAUT-IL BRÛLER SADE?
Simone de Beauvoir
1955
FAUT-IL BRÛLER SADE?
Simone de Beauvoir
1955
Parte VIII
É trair Sade votar-lhe uma simpatia muito fácil; pois é a minha desgraça que ele quer, minha sujeição e minha morte; e cada vez que tomamos partido pelo menino que esganou um sátiro, erguemo-nos contra ele. Por outro lado, ele também não me proíbe de me defender; admite que um pai de família vingue ou impeça, ainda que pelo assassínio, a violação de seu filho. O que ele reclama é que na luta que opõe existências inconciliáveis, cada qual se empenhe concretamente em nome da sua própria existência. Aprova a vendetta, mas não os tribunais: pode-se matar, mas não julgar. As pretensões do juiz são mais arrogantes que as do tirano, porque este se limita a coincidir consigo mesmo, ao passo que o outro tenta erigir suas opiniões em lei universal; sua tentativa baseia-se numa mentira, pois cada qual está fechado em sua própria pele e ele não poderá tornar-se mediador de indivíduos separados dos quais ele próprio está separado. E que numerosos desses indivíduos se liguem, que juntos se alienem em instituições das quais nenhum é mais o senhor, isso não lhes dá qualquer direito novo: o número nada tem a ver com o caso. Não há meio algum de medir o que é incomensurável. Para fugir aos conflitos da existência nós nos refugiamos num universo de aparências e a própria existência se furta; crendo defender-nos, aniquilamo-nos. O imenso mérito de Sade está em que ele reivindica, contra as abstrações e alienações que não passam de fugas, a verdade do homem. Ninguém mais apaixonadamente do que ele é apegado ao concreto. Jamais concedeu algum crédito ao “diz-se” de que os espíritos medíocres se nutrem preguiçosamente; só adere às verdades que se lhe oferecem na evidência de sua experiência vivida; por isso ultrapassou o sensualismo de sua época para transformá-lo numa moral da autenticidade.
Não significa isto que a solução por ele proposta nos satisfaça. Porque se a grandeza de Sade provém de que ele quis apreender na sua situação singular a própria essência da condição humana, daí resultam também seus limites. A saída que escolheu, ele a considerou válida para todos, e com exclusão de qualquer outra: nisso enganou-se duplamente. Apesar de todo seu pessimismo, ele está socialmente do lado dos privilegiados e não compreendeu que a iniqüidade social atinge o indivíduo até em suas possibilidades éticas; a própria revolta é um luxo necessário da cultura, dos ócios, um recuo diante das exigências da existência; se os heróis de Sade a pagam com suas vidas, pelo menos é depois que ela deu a essas vidas um sentido válido; ao passo que para a imensa maioria dos homens ela equivaleria a um suicídio estúpido. Contrariamente a seus desejos, é a sorte e não o mérito que operaria a seleção de uma elite criminosa. Se se objetar que ele nunca visou à universalidade, que lhe bastava garantir a própria salvação, não se lhe faz justiça; ele propôs-se como exemplo, visto que escreveu — e com que paixão — sua experiência; e sem dúvida não presumia que esse apelo fosse ouvido por todos, mas não pensava em dirigi-lo apenas aos membros das classes privilegiadas cuja arrogância detestava; essa espécie de predestinação em que acreditava, concebia-a democraticamente e não teria querido descobrir que elã dependia das circunstâncias econômicas das quais, na sua idéia, ela devia permitir escapar.
Por outro lado, Sade não supôs que pudesse existir outro caminho além da rebelião individual; ele conhece apenas uma alternativa: a da moral abstrata ou do crime; ignora a ação. Se suspeitou que uma comunicação concreta entre os indivíduos é permitida através de uma empresa que integrasse todos os homens no projeto geral de ser um homem, não se deteve nela; recusando ao indivíduo sua transcendência, vota-o a uma insignificância que autoriza a violentá-lo; mas essa violência, exercendo-se no vazio, torna-se irrisória, e o tirano que procura afirmar-se por ela termina descobrindo assim o seu próprio nada.
A esta contradição, entretanto, Sade pode opor outra. Pois o sonho acariciado pelo século XVIII de conciliar os indivíduos no seio de sua imanência é de qualquer modo impraticável: o desmentido que iria infligir-lhe o Terror, Sade encarnou-o a seu modo de maneira patética; o indivíduo que não concorda em renegar sua singularidade é repudiado pela sociedade. Mas se escolhermos não reconhecer em cada indivíduo senão a transcendência que o une concretamente a seus semelhantes, somos levados a aliená-los todos a novos ídolos, e sua insignificância singular parecerá tanto mais evidente; sacrificaremos o hoje ao amanhã, a minoria à maioria, a liberdade de cada um às realizações coletivas. A prisão e a guilhotina serão as conseqüências lógicas dessa negação. A mentirosa fraternidade acaba em crimes nos quais a virtude reconhece seu rosto abstrato. “Nada se parece tanto com a virtude como um grande crime”, disse Saint-Just. Não será preferível assumir esse mal do que subscrever esse bem que arrasta consigo abstratas hecatombes? Evidentemente é impossível eludir este dilema. Se a totalidade dos homens que povoam a terra estivesse presente a todos, em toda sua realidade, nenhuma ação coletiva seria permitida e para cada um deles o ar se tornaria irrespirável. A cada instante milhares de indivíduos sofrem e morrem, inutilmente, injustamente, sem que isso nos afete: nossa existência só é possível a esse preço. O mérito de Sade não está apenas em ter gritado bem alto o que cada qual se confessa envergonhadamente: está em não ter tomado partido. Contra a indiferença escolheu a crueldade. Por isso, sem dúvida, encontra tantos ecos hoje, em que o indivíduo se sabe vítima menos da maldade dos homens do que da boa consciência deles; é vir em seu socorro iniciar a demolição desse terrificante otimismo. Na solidão dos calabouços, Sade realizou uma noite ética análoga à noite intelectual em que se envolveu Descartes; não fez jorrar dela uma evidência, mas pelo menos contestou todas as respostas demasiado fáceis. Se resta alguma esperança de superar algum dia a separação dos indivíduos, é com a condição de não menosprezá-la; do contrário, as promessas de felicidade e de justiça envolvem as piores ameaças. Sade viveu até o fim o momento do egoísmo, da injustiça, da desgraça, sempre reivindicando-lhe a verdade. O que faz o supremo valor de seu testemunho é que ele nos inquieta. Obriga-nos a examinar de novo o problema essencial que, sob outras figuras, obseda nosso tempo: a verdadeira relação do homem com o homem.
FAUT-IL BRÛLER SADE? (1955)
Simone de Beauvoir
Não significa isto que a solução por ele proposta nos satisfaça. Porque se a grandeza de Sade provém de que ele quis apreender na sua situação singular a própria essência da condição humana, daí resultam também seus limites. A saída que escolheu, ele a considerou válida para todos, e com exclusão de qualquer outra: nisso enganou-se duplamente. Apesar de todo seu pessimismo, ele está socialmente do lado dos privilegiados e não compreendeu que a iniqüidade social atinge o indivíduo até em suas possibilidades éticas; a própria revolta é um luxo necessário da cultura, dos ócios, um recuo diante das exigências da existência; se os heróis de Sade a pagam com suas vidas, pelo menos é depois que ela deu a essas vidas um sentido válido; ao passo que para a imensa maioria dos homens ela equivaleria a um suicídio estúpido. Contrariamente a seus desejos, é a sorte e não o mérito que operaria a seleção de uma elite criminosa. Se se objetar que ele nunca visou à universalidade, que lhe bastava garantir a própria salvação, não se lhe faz justiça; ele propôs-se como exemplo, visto que escreveu — e com que paixão — sua experiência; e sem dúvida não presumia que esse apelo fosse ouvido por todos, mas não pensava em dirigi-lo apenas aos membros das classes privilegiadas cuja arrogância detestava; essa espécie de predestinação em que acreditava, concebia-a democraticamente e não teria querido descobrir que elã dependia das circunstâncias econômicas das quais, na sua idéia, ela devia permitir escapar.
Por outro lado, Sade não supôs que pudesse existir outro caminho além da rebelião individual; ele conhece apenas uma alternativa: a da moral abstrata ou do crime; ignora a ação. Se suspeitou que uma comunicação concreta entre os indivíduos é permitida através de uma empresa que integrasse todos os homens no projeto geral de ser um homem, não se deteve nela; recusando ao indivíduo sua transcendência, vota-o a uma insignificância que autoriza a violentá-lo; mas essa violência, exercendo-se no vazio, torna-se irrisória, e o tirano que procura afirmar-se por ela termina descobrindo assim o seu próprio nada.
A esta contradição, entretanto, Sade pode opor outra. Pois o sonho acariciado pelo século XVIII de conciliar os indivíduos no seio de sua imanência é de qualquer modo impraticável: o desmentido que iria infligir-lhe o Terror, Sade encarnou-o a seu modo de maneira patética; o indivíduo que não concorda em renegar sua singularidade é repudiado pela sociedade. Mas se escolhermos não reconhecer em cada indivíduo senão a transcendência que o une concretamente a seus semelhantes, somos levados a aliená-los todos a novos ídolos, e sua insignificância singular parecerá tanto mais evidente; sacrificaremos o hoje ao amanhã, a minoria à maioria, a liberdade de cada um às realizações coletivas. A prisão e a guilhotina serão as conseqüências lógicas dessa negação. A mentirosa fraternidade acaba em crimes nos quais a virtude reconhece seu rosto abstrato. “Nada se parece tanto com a virtude como um grande crime”, disse Saint-Just. Não será preferível assumir esse mal do que subscrever esse bem que arrasta consigo abstratas hecatombes? Evidentemente é impossível eludir este dilema. Se a totalidade dos homens que povoam a terra estivesse presente a todos, em toda sua realidade, nenhuma ação coletiva seria permitida e para cada um deles o ar se tornaria irrespirável. A cada instante milhares de indivíduos sofrem e morrem, inutilmente, injustamente, sem que isso nos afete: nossa existência só é possível a esse preço. O mérito de Sade não está apenas em ter gritado bem alto o que cada qual se confessa envergonhadamente: está em não ter tomado partido. Contra a indiferença escolheu a crueldade. Por isso, sem dúvida, encontra tantos ecos hoje, em que o indivíduo se sabe vítima menos da maldade dos homens do que da boa consciência deles; é vir em seu socorro iniciar a demolição desse terrificante otimismo. Na solidão dos calabouços, Sade realizou uma noite ética análoga à noite intelectual em que se envolveu Descartes; não fez jorrar dela uma evidência, mas pelo menos contestou todas as respostas demasiado fáceis. Se resta alguma esperança de superar algum dia a separação dos indivíduos, é com a condição de não menosprezá-la; do contrário, as promessas de felicidade e de justiça envolvem as piores ameaças. Sade viveu até o fim o momento do egoísmo, da injustiça, da desgraça, sempre reivindicando-lhe a verdade. O que faz o supremo valor de seu testemunho é que ele nos inquieta. Obriga-nos a examinar de novo o problema essencial que, sob outras figuras, obseda nosso tempo: a verdadeira relação do homem com o homem.
FAUT-IL BRÛLER SADE? (1955)
Simone de Beauvoir