sábado, 2 de agosto de 2008

Queimar Sade? Parte III

DEVE-SE QUEIMAR SADE?
FAUT-IL BRÛLER SADE?
Simone de Beauvoir
1955

Parte III

Se Sade foi finalmente vencido pela sogra e pela lei, tornou-se cúmplice dessa derrota. Qualquer que fosse a parte do acaso e a da sua imprudência no escândalo de 1763, o certo é que daí por diante ele buscou no perigo a exaltação dos seus prazeres; neste sentido, pode-se dizer que desejou as perseguições, embora suportadas com indignação. Era brincar com o fogo escolher o domingo de Páscoa para atrair à sua casa de Arcueil a mendiga Rose Keller; chicoteada, aterrorizada, mal presa, ela fugiu nua, provocando um escândalo que Sade teve de pagar, com duas breves detenções.

Durante os três anos de exílio — entremeados de alguns períodos de serviço — que ele passou então nas suas terras de Provença, pareceu ajuizado; desempenhou conscienciosamente o papel de castelão e de marido: dá dois filhos à esposa, recebe a homenagem da comunidade de Saumane, cuida do seu parque, lê, faz representar comédias no seu teatro, uma das quais de sua autoria; todavia é mal recompensado por esta vida edificante: em 1771 prendem-no por dívidas. Solto, arrefece o zelo virtuoso; seduz a jovem cunhada, por quem parece ter tido, durante curto lapso de tempo, uma inclinação bastante sincera: professa, virgem, irmã de sua esposa, todos esses títulos emprestam à aventura um sabor picante.

Apesar disso, vai procurar em Marselha outras distrações, e em 1772 “o caso dos bombons cantaridados” assume proporções imprevistas e terrificantes; enquanto foge para a Itália com a cunhada, é condenado a morte por contumácia, bem como seu criado Latour, e ambos são queimados em efígie na Praça de Aix. A jovem refugia-se num convento na França, onde acabará seus dias; ele enterra-se na Sabóia; apanhado e encarcerado na prisão de Miolans, a esposa ajuda-o a fugir mas, desde então, é um homem acuado. Quer percorrendo as estradas da Itália, quer escondido em seu solar, compenetra-se de que nunca mais lhe será permitida uma existência normal. De vez em quando, leva a sério seu papel senhorial; como um grupo de comediantes se instalasse nas suas propriedades para nelas representar O marido corno, espancado e satisfeito, irritado talvez por esse título, manda rasgar todos os cartazes por “escandalosos e atentatórios às liberdades da Igreja”; expulsa do seu domínio um certo Saint-Denis — contra o qual alimentava agravos — declarando: “Tenho direito de expulsar de minhas terras as pessoas que não têm eira nem beira”.

Estes lances de autoridade não bastam para distraí-lo; tenta realizar o sonho que obsedará seus livros: na solidão do castelo de La Coste, instala um serralho dócil aos seus caprichos; com a cumplicidade da marquesa, reúne ali diversos criados bonitos, um secretário iletrado, mas de presença agradável, uma cozinheira e uma criada de quarto apetitosas, além de duas moçinhas fornecidas por cafetinas.


Porém, o castelo de La Coste não é a inacessível fortaleza das Cent vingt lournées; a sociedade espreita-o. As moçinhas fogem, a camareira retira-se para dar à luz um filho cuja paternidade atribui ao marquês, o pai da cozinheira alveja Sade com um tiro de pistola, o lindo secretário é reclamado pelos pais. Só Renée-Pélagie se conforma exatamente com o papel que lhe consignou o marido; todos os demais reivindicam suas próprias existências e Sade compreende mais uma vez que lhe não é possível fazer desse mundo demasiado real o seu teatro.

Esse mundo não se limita a frustrar-lhe os sonhos: repudia-o. Sade foge para a Itália, porém Mme de Montreuil, que lhe não perdoa a sedução da filha mais nova, espreita-o; voltando à França, arrisca-se a ir a Paris, e a dama aproveita a ocasião para fazê-lo encarcerar no castelo de Vincennes em 13 de fevereiro de 1777. De volta a Aix, após o julgamento, refugia-se em La Coste onde ensaia, sob o olhar resignado da esposa, um idílio com Mlle Rousset, sua governanta. Mas a 7 de novembro de 1778 está de novo em Vincennes, enjaulado, como uma fera, atrás de dezenove portas de ferro.

Começa então outra história; durante onze anos de cativeiro — primeiro em Vincennes, depois na Bastilha — agoniza um homem e nasce um escritor. O homem é logo quebrantado; reduzido à impotência, ignorando quanto tempo vai durar sua detenção, seu espírito extravia-se em delírios interpretativos: por meio de cálculos minuciosos, sem base em qualquer dado, tenta adivinhar qual será o termo do seu cativeiro. Intelectualmente refaz-se depressa, como prova sua correspondência com Mme de Sade e com Mlle Rousset. Mas a sua carne abdica; ele procura nos prazeres da mesa uma compensação para o jejum sexual; conta o seu criado Carteron que na prisão “fumava cachimbo como um corsário” e “comia por quatro”. Exagerado em tudo, segundo a sua própria confissão, torna-se bulímico; manda vir pela esposa enormes cestos de alimento e a gordura apodera-se dele. Em meio às suas queixas, acusações, justificações e súplicas, diverte-se ainda um pouco a torturar a marquesa: finge-se ciumento, atribui-lhe negras maquinações, e quando ela o visita censura-lhe as vestimentas, exige-lhe aparência mais austera. Todavia, essas distrações são raras e muito tênues. A partir de 1782 é só à literatura que vai pedir o que a vida não mais lhe concede: a agitação, o desafio, a sinceridade e todas as alegrias da imaginação. E mesmo nisso, é exagerado: escreve do mesmo modo que come, com frenesi.

Ao Diálogo entre um padre e um moribundo sucedem-se as Cent vingt Journées de Sodome, os lnfortunes de la vertu, Aline et Valcour. Segundo o catálogo de 1788, teria escrito então trinta e cinco atos de teatro, meia dúzia de contos, a quase totalidade de Portefeuille d’un homme de lettres; e sem dúvida a lista não está completa.

Quando recobra a liberdade, na sexta-feira santa do ano de 1790, Sade pode esperar, e espera, que uma nova era se abra para ele. A esposa reclama a separação; os filhos — um dos quais se prepara para emigrar e outro é cavaleiro de Malta — são-lhe estranhos, o mesmo sucedendo com a “rude camponesa” que tem por filha. Liberto da família procurará integrar-se, ele a quem a antiga sociedade tratara como pária, naquela que acaba de lhe devolver a dignidade de cidadão. Representam-se publicamente as suas peças, Oxtiern obtém mesmo grande êxito. Inscrito na Section des Piques, é nomeado seu presidente e redige com entusiasmo mensagens e petições. Mas seu idílio com a Revolução dura pouco. Sade conta cinqüenta anos, um passado que o torna suspeito, um temperamento de aristocrata que seu ódio à aristocracia não abrandou; e ei-lo de novo dividido. É republicano, e teoricamente exige mesmo um socialismo integral e a abolição da propriedade: mas empenha-se em conservar seu solar e suas terras; esse mundo a que tenta adaptar-se é ainda um mundo demasiado real, cujas brutais resistências o ferem; e é um mundo redigido por essas leis universais que ele considera abstratas, falsas e injustas; quando em nome delas a sociedade se permite o assassínio, o marquês retira-se com horror. Compreende-o muito mal quem se admira de que, em vez de solicitar um posto de comissário do povo na província, que lhe permitiria torturar e matar, ele se tenha desacreditado pelo humanismo; supor-se que “amava o sangue” como se ama a montanha e o mar? “Derramar sangue” era um ato cuja significação podia, em certas circunstâncias, ser para ele motivo de exaltação; mas o que, sobretudo, pedia à crueldade era que ela lhe revelasse como consciência e liberdade, ao mesmo tempo em que como carne, indivíduos singulares e sua própria existência; julgar, condenar, ver morrer a distância pessoas anônimas, a isso se recusa.

O que ele mais odiou na velha sociedade foi a pretensão desta, e da qual ele foi vítima, de julgar e punir: de modo algum poderia desculpar o Terror. Quando o homicídio se torna constitucional, passa a ser apenas a odiosa expressão de princípios abstratos: torna-se desumano. Eis por que, nomeado membro do júri de acusação, Sade engendra quase sempre desculpas em favor dos réus; recusou-se a prejudicar em nome da lei Mme de Montreuil e sua família quando a sorte de todos estava em suas mãos; foi mesmo obrigado a demitir-se da função de presidente da Section des Piques; escreveu a Gaufridy: Julguei-me compelido a passar a cadeira ao meu vice-presidente; eles queriam que eu cometesse um horror, uma desumanidade: nunca assenti.

Em dezembro de 1793 foi encarcerado sob a acusação de “moderantismo”; solto trezentos e setenta e cinco dias depois, escreve com tédio: Minha detenção nacional, com a guilhotina debaixo dos olhos, fez-me cem vezes mais mal do que teriam feito todas as bastilhas imagináveis.

É que, com essas grosseiras hecatombes, a política demonstra com excessiva evidência considerar os homens uma simples coleção de objetos, ao passo que Sade exige, ao redor de si, um universo povoado de seres singulares; o “mal” de que ele fizera seu refúgio desvanece-se quando o crime é reivindicado pela virtude; o Terror, que é exercido em sã consciência, constitui a mais radical negação do mundo demoníaco de Sade.

“O excesso de Terror embotou o crime”, escreveu Saint-Just. Não é apenas porque Sade está velho, gasto, que sua sexualidade adormeceu; a guilhotina assassinou a negra poesia do erotismo; para deleitar-se em humilhar a carne, exaltá-la, era preciso valorizá-la; ela não tem mais sentido nem valor quando os homens podem ser tranqüilamente tratados como coisas; Sade ainda saberá ressuscitar em seus livros a experiência passada; e reavivar seu antigo universo; porém não mais acredita nele em seu sangue e em seus nervos.

Nada há de físico na ligação que o prende àquela a quem chama Sensible. Seus únicos prazeres eróticos, tira-os da contemplação de pinturas obscenas inspiradas em Justine com que ornamenta um gabinete secreto; recorda-se; mostra-se, porém, incapaz de qualquer arrebatamento e o simples encargo de viver acabrunha-o; liberto dos quadros sociais e familiares em que sufocava, mas cuja sólida moldura lhe era necessária, arrasta-se da miséria para a doença; vendidos com prejuízos os bens de La Coste, depressa lhes devorou o produto; refugiado em casa de um rendeiro, e depois num celeiro com o filho de Sensible, ganhando quarenta soldos por dia como empregado no espetáculo de Versalhes, o decreto de 28 de junho de 1799 que proíbe riscá-lo da lista dos emigrados onde ele fora inscrito quando nobre, arranca-lhe estas palavras desesperadas: A morte e a miséria, eis a recompensa que obtenho pelo meu intransigente apego à República.

Recebe, entretanto, um certificado de residência e de civismo, e em dezembro de 1799 representa em Oxtiern o papel de Fabrício, mas já no começo de 1800 está no hospital de Versalhes, “morrendo de fome e de frio” e ameaçado de prisão por dívidas. É tão desgraçado no mundo hostil dos assim chamados livres, que seria lícito perguntar se ele não preferiu voltar à solidão e à segurança da prisão; podemos pelo menos dizer que, para ter a imprudência de fazer circular Justine, e a loucura de publicar Zoloé onde ataca Josefina, Mme Tallien, Tallien, Barras e Bonaparte, era necessário que a idéia de uma nova reclusão lhe não repugnasse demais. Secreto ou confesso, seu desejo é satisfeito; ei-lo em 5 de abril de 1801 encarcerado em Sainte-Pélagie, e é aí, e depois em Charenton — onde o acompanhará Mme de Quesnet que consegue um quarto próximo do seu, fazendo-se passar por sua filha — que terminará os seus dias.

Naturalmente, tão logo é preso e durante anos, Sade protesta e agita-se; mas ao menos pode dedicar-se outra vez e com displicência à paixão que substituiu nele a do gozo: escrever. Nunca parou. Ao sair da Bastilha a maior parte dos seus papéis perdeu-se, e ele julgou destruído o manuscrito das Journées de Sodome — um rolo de doze metros que escondera cuidadosamente e foi salvo, sem que ele o soubesse. Depois da Philosophie dans le boudoir, escrita em 1795, compôs nova súmula: a versão inteiramente desenvolvida e modificada de Justine, seguida de Juliette,
que apareceu, renegada por ele, em 1797; publicamente mandou editar os Crimes de l’Amour. Em Sainte-Pélagie absorve-se numa obra imensa em dez volumes: Les Journées de Florabelle ou la Nature dévoilée; e cumpre atribuir-lhe também, embora o livro não tenha aparecido com seu nome, os dois volumes de La marquise de Canges.

É sem dúvida porque, daí em diante, o sentido existência reside definitivamente no seu trabalho de escritor, que Sade, em sua vida quotidiana, apenas deseja a paz. Passeia com Sensible nos jardins do asilo, escreve e promove a representação de comédias para os doentes: aceita compor um improviso para celebrar uma visita do arcebispo de Paris; no domingo de Páscoa distribui pão bento e recolhe esmolas na igreja da paróquia. Seu testamento prova que não renegou nenhuma de suas convicções; mas estava cansado de lutar. “Era polido até a obsequiosidade — diz Nodier — afável até a unção e... falava respeitosamente de tudo o que se respeita.” Segundo Ange Pitou, a idéia da velhice e da morte causava-lhe horror. “Aquele homem empalidecia à idéia da morte e desmaiava ao ver os seus cabelos brancos.” Morreu, contudo, serenamente, vitimado a 2 de dezembro de 1814 por “uma obstrução pulmonar em forma de asma”.

Da dolorosa experiência que foi sua vida, o traço mais relevante é que entre os demais homens e ele esta lhe não revelou nenhuma solidariedade. Nenhum empreendimento comum ligava entre si os últimos rebentos de uma nobreza decadente; Sade povoou a solidão a que o condenava o nascimento com jogos eróticos tão exagerados que seus pares se voltaram contra ele; quando um novo mundo despontou, arrastava atrás de si um passado pesado demais: um desacordo consigo mesmo, suspeito aos outros, esse aristocrata obcecado por sonhos de despotismo não podia sinceramente aliar-se à burguesia ascendente; embora a acuse da opressão em que o povo é mantido, este é-lhe todavia estranho; não pertence a qualquer das classes cujo antagonismo denuncia, é de si próprio o único semelhante. Se sua formação afetiva fosse diferente, talvez ele pudesse contrariar esse destino; mas, durante toda vida, surge como um egocêntrico inveterado; sua indiferença pelos acontecimentos exteriores, suas obsedantes preocupações de dinheiro, as cautelas maníacas de que cerca suas devassidões, o delírio interpretativo esboçado em Vincennes e o aspecto esquizofrênico de seus sonhos revelam um temperamento radicalmente introvertido. Esta coincidência apaixonada consigo mesmo, se porventura lhe marcou limites, deu, por outro lado, à sua vida o caráter exemplar que nos leva a interrogá-lo hoje.

continua...