DEVE-SE QUEIMAR SADE?
FAUT-IL BRÛLER SADE?
Simone de Beauvoir
1955
FAUT-IL BRÛLER SADE?
Simone de Beauvoir
1955
Parte VII
Todavia, no meio dos homens está sozinho; na medida em que o século XVIII foi tentando abolir o reinado de Deus sobre a Terra, foi substituindo-o por outro ídolo; ateus e deístas juntam-se no culto que rendem a esta nova encarnação do Bem Supremo: a Natureza; eles não pretendem de modo algum renunciar às comodidades de uma moral categórica e universal; os valores transcendentes desmoronaram, o prazer é reconhecido como a medida do bem e por este hedonismo o amor-próprio é reabilitado: “Devemos começar por dizer a nós mesmos que nada temos a fazer neste mundo exceto proporcionar-nos sensações e sentimentos agradáveis”, escreve, por exemplo, Mme du Chatelet. Porém estes tímidos egotistas postulam uma ordem natural que garante a harmoniosa conciliação dos interesses particulares com o interesse geral; basta uma organização racional, obtida através de um pacto ou contrato, para que a sociedade prospere em benefício de cada um e de todos. Dessa religião otimista, Sade veio a ser o trágico desmentido.
O século XVIII pintou freqüentemente o amor com tristes e sombrias cores; Richardson, Prévost, Duclos e Crébillon que Sade cita com apreço — e, sobretudo, Laclos que ele pretende ignorar — criaram personagens mais ou menos satânicos; porém a maldade deles tem sempre origem numa perversão do espírito ou da vontade, não na espontaneidade. Por causa de seu caráter instintivo, o erotismo propriamente dito é pelo contrário reabilitado; ingênuo, são, útil à espécie, o desejo sexual confunde-se, segundo Diderot, com o próprio movimento da vida, e as paixões que desencadeia são tão boas e fecundas quanto ele: se as freiras da Religieuse se entregam a maldades “sádicas”, é porque reprimem os apetites em vez de saciá-los. Rousseau, cuja experiência sexual foi complexa e pouco risonha, exprime-o por sua vez em termos edificantes: “Doces voluptuosidades, voluptuosidades puras, vivas, sem qualquer mistura de tormento...” E ainda: “O amor que eu concebo, que cheguei a sentir, inflama-se à imagem ilusória da perfeição do objeto amado; e essa mesma ilusão o leva ao entusiasmo da virtude; pois esta idéia entra sempre na de uma mulher perfeita(7)”. Mesmo em Rétif de la Bretonne, se o prazer assume um caráter tempestuoso é contudo enlêvo, languidez, ternura. Sade é o único a descobrir a sexualidade como egoísmo, tirania, crueldade; num instinto natural ele surpreende um convite ao crime. Isto bastaria para lhe dar na história da sensibilidade do seu século um lugar à parte, mas dessa intuição ele extraiu conseqüências éticas ainda mais singulares.
Declarar a natureza má não era em si uma idéia nova. Hobbes, que Sade conhecia bem, e cita de bom grado, decidira que “o homem é o lobo do homem” e o estado da natureza um estado de guerra; uma importante linha de moralistas e satíricos ingleses seguiu-o por esses caminhos entre outros Swift, que Sade leu tanto a ponto de copiá-lo. Em França, Vauvenargues retomou a tradição puritana e jansenista, oriunda do cristianismo, que confunde a carne com o pecado original. Bayle e com maior brilho Buffon assentaram que a Natureza não é integralmente boa, e se a lenda do bom selvagem se perpetuou desde o século XVI, especialmente com Diderot e os Enciclopedistas, já nos começos do século XVIII Émeric de Crucé se rebelava contra ela; a história, as viagens e a ciência foram aos poucos desacreditando-a. Era fácil a Sade sustentar por numerosos argumentos a tese implícita em sua experiência erótica e que a sociedade ironicamente confirmou, visto que o meteu na prisão por haver obedecido a seus instintos; mas a diferença entre ele e seus antecessores reside em que, depois de terem denunciado a perversidade da natureza, eles lhe opunham uma moral artificial que provinha de Deus ou da sociedade, ao passo que, do credo geralmente aceito “A Natureza é boa, sigamo-la”, Sade, rejeitando o primeiro ponto, conserva paradoxalmente o segundo. O exemplo da Natureza guarda um valor imperativo, embora sua lei seja uma lei de ódio e destruição. Por meio de que artifício ele assim voltou contra seus devotos o culto novo, é o que precisamos estudar mais de perto.
Sade concebeu de diferentes maneiras a relação entre o homem e a Natureza; suas variações afiguram-se-me menos como as conjunturas de uma dialética do que como traduzindo a hesitação de um pensamento que ora limita suas audácias, ora se desencadeia desenfreadamente. Quando se restringe a procurar justificações prematuras, Sade adota uma visão mecanicista do mundo. Le Mettrie garantiu indiferença moral dos atos humanos, ao declarar: “Nós não somos mais culpados seguindo o impulso dos movimentos primitivos que nos governam do que o Nilo o é das suas inundações e o mar das suas ondas”. Assim, Sade, para se desculpar, se compara às plantas, aos animais e aos elementos. Em suas mãos eu não passo de uma máquina que ela(8) põe em movimento conforme lhe apraz. Embora ele se haja mil vezes entrincheirado atrás de afirmações análogas, estas não exprimem seu pensamento sincero. Em primeiro lugar, a Natureza não é a seus olhos uma mecânica indiferente; há uma significação em seus avatares, a ponto de podermos divertir-nos imaginando que um gênio mau a conduz; na verdade, é cruel e devoradora, é habitada pelo espírito de destruição; ela desejaria o aniquilamento total das criaturas desabrochadas, a fim de gozar da faculdade que tem de criar outras novas.
Por outro lado, o homem não é seu escravo; já em Aline et Valcour, Sade indicava que ele pode subtrair-se à Natureza e voltar-se contra ela: Ousemos enfim ultrajar essa Natureza ininteligível para melhor saber a arte de desfrutá-la. E de maneira mais decisiva declara em Juliette: Uma vez criado o homem não mais depende da Natureza: depois que a Natureza o criou, não tem mais nenhum poder sobre o homem. Torna a insistir; em sua relação com a natureza o homem é comparável à espuma, ao vapor que se eleva do líquido rarefeito, num recipiente, pelo fogo: esse vapor não é criado, é resultante, heterogêneo; tira a sua existência de um elemento estranho, pode ser ou não ser, sem que o elemento de que emana sofra com isso; nada deve a esse elemento e esse elemento, nada lhe deve. Embora não sendo perante o universo mais que um floco de espuma, essa mesma insignificância assegura ao homem sua autonomia; a ordem da natureza não poderia escravizá-lo, visto ele lhe ser radicalmente heterogêneo; por isso uma decisão ética é-lhe permitida, não competindo a ninguém ditar-lha. Por que, dos caminhos que diante dele se abrem, Sade escolheu então o que pela imitação da natureza o levou ao crime? É necessário abarcar todo o conjunto do seu sistema para responder a esta pergunta: o objetivo do sistema é precisamente justificar os “crimes” a que ele jamais pretendeu renunciar.
Nós somos sempre mais influenciados do que imaginamos pelas idéias que combatemos; sem dúvida, é como argumento ad hominem que Sade utiliza freqüentemente o neutralismo; achei um prazer maligno em reivindicar a favor do mal os exemplos que seus contemporâneos pretendiam explorar em benefício do bem; mas também, sem dúvida alguma, ele dá por assente que o fato fundamenta o direito. Quando quer demonstrar que o libertino está autorizado a oprimir as mulheres, exclama: Não provou a Natureza que nós tínhamos esse direito, dando-nos a força necessária para submetê-las aos nossos desejos? Poder-se-iam multiplicar as citações análogas: A Natureza fez-nos nascer todos iguais, Sofia, diz a Dubois a Justine. Se o destino se compraz em alterar este primeiro plano das leis gerais, cabe-nos corrigir-lhe os caprichos. E a censura capital que Sade dirige aos códigos impostos pela sociedade, é que eles são artificiais; numa passagem especialmente significativa(9), compara-os aos que instituíssem uma comunidade de cegos: Não passando estes deveres de convenções, são realmente quiméricos. O homem construiu leis baseando-se nos seus pequenos conhecimentos; seus pequenos ardis e suas pequenas necessidades, mas nada há de real em tudo isso... Cheguemos à natureza mesma, e facilmente compreenderemos que tudo quanto arranjamos e decidimos está tão longe da perfeição das suas vistas e é tão inferior a ela quanto o são relativamente às nossas leis as desta sociedade de cegos. Montesquieu antecipara que as leis dependem do clima, das circunstâncias, até da disposição das “fibras” do nosso corpo; poder-se-ia concluir que nelas se expressam os diversos aspectos que através do espaço e do tempo apresenta a natureza. Mas quando Sade nos passeia incansavelmente pela Patagônia, pelo Taiti e pelos antípodas, é para nos demonstrar que a diversidade das regras ditadas lhos contesta definitivamente o valor; se são relativas, afiguram-se-lhe arbitrárias, e importa notar que convencional e quimérico são para ele sinônimos. A natureza conserva, na sua opinião, um caráter sagrado; indivisível, única, é um absoluto fora do qual não há realidade.
É fato patente que o pensamento de Sade não seja neste ponto completamente coerente, que tenha evoluído, que nem todos os seus momentos sejam igualmente sinceros; mas as suas inconseqüências não são tão flagrantes quanto se poderia imaginar. A natureza é má, portanto a sociedade que dela se afasta merece nossa submissão — este seria um silogismo demasiado simples. Em primeiro lugar, a hipocrisia da sociedade torna-a suspeita: ela invoca a natureza mesmo quando lhe é hostil, mas, a despeito do antagonismo que lhe manifesta, tem nela suas raízes; até na maneira como a contradiz, demonstra sua perversão original. A idéia de interesse geral não possui qualquer fundamento natural: Os interesses dos particulares são quase sempre opostos aos da sociedade; mas foi para saciar um instinto natural que ela foi inventada, a saber, a vontade tirânica dos poderosos. Em vez de retificar a ordem primitiva do mundo, as leis só lhe agravam a injustiça. Todos nós nos assemelhamos, exceto na força; quer dizer que não há entre os indivíduos nenhuma diferença de essência, e a distribuição desigual das forças poderia ter sido compensada: pelo contrário, os fortes arrogaram-se todas as superioridades e até mesmo as inventaram.
Holbach e muitos outros com ele haviam denunciado a hipocrisia dos códigos cujo fim único é a opressão dos fracos; Morelly e Brissot haviam, entre outros, demonstrado que a propriedade não repousa em qualquer fundamento natural; a sociedade fabricou todas as peças dessa instituição iníqua. “Não há propriedade exclusiva na natureza”, escreveu Brissot. “A palavra está riscada do seu código; este infeliz esfaimado pode levar, devorar esse pão que lhe pertence porque ele tem fome: a fome é o seu título.” É quase nos mesmos termos que Sade, na Philosophie dans le boudoir, reclama que se substitua a idéia de gozo pela de propriedade; como poderia esta gabar-se de constituir um direito universalmente reconhecido quando o pobre se insurge contra ela e o rico só pensa em aumentá-la por meio de novos açambarcamentos? É por uma total igualdade das fortunas e das condições que se deveria abater o poderio do mais forte, e não por leis inúteis.
Mas o fato é que foram os fortes que fizeram essas leis em seu proveito; sua presunção manifesta-se da maneira mais odiosa nos castigos que eles se arrogam o direito de infligir. Beccaria sustentara que o fim do castigo é reparar, mas que ninguém deve pretender punir. Sade, na sua esteira, ergue-se com virulência contra toda a sanção de caráter expiatório: Ó matadores, encarceradores, estúpidos enfim de todos os reinados e de todos os governos, quando preferireis vós a ciência de conhecer o homem à de o encarcerar e de o matar? É contra a pena de morte que ele especialmente se insurge; pretende-se justificá-la pela lei de Talião, mas ainda essa é uma quimera sem qualquer raiz na realidade; em primeiro lugar, não existe a reciprocidade entre os próprios indivíduos, suas existências não são comensuráveis; depois não há qualquer analogia entre um assassínio cometido impulsivamente, por paixão ou necessidade, e o assassinato friamente premeditado por juízes; e como poderia este de algum modo compensar aquele? Longe de atenuar a crueldade da natureza, a sociedade só sabe exasperá-la levantando cadafalsos.
Na verdade, ela nunca fez mais do que opor ao mal um mal maior; nada a autoriza a reclamar a nossa lealdade. O famoso contrato invocado por Hobbes e por Rousseau não passa de um mito: como poderia a liberdade individual reconhecer-se na ordem que a oprime? O pacto não convém aos fortes, que não têm interesse em abdicar de qualquer dos seus privilégios, nem aos fracos cuja inferioridade ratifica; entre estes dois grupos só poderá existir um estado de guerra, e os próprios valores são incompatíveis com os do outro. No instante em que ele subtraía cem luíses da algibeira de um homem, faz uma coisa perfeitamente justa para si, embora o homem roubado a encarasse com outros olhos. No discurso que atribui a Coeur de Fer, Sade denunciou com veemência a mistificação burguesa que consiste em erigir em princípios universais seus interesses de classe: nenhuma moral universal é possível, desde que as condições concretas em que vivem os indivíduos não sejam homogêneas.
Mas se a sociedade traiu suas próprias pretensões, não devemos tentar reformá-la? A liberdade do indivíduo não pode justamente empregar-se nessa tarefa? Não me parece duvidoso que Sade tenha encarado por vezes esta solução. Note-se que, em Aline et Valcour, ele descreve com igual complacência a sociedade anárquica dos canibais, que dá direito à crueldade instintiva do homem, e a sociedade comunista de Zamé, em que o mal é desarmado pela justiça. Não me parece, absolutamente, que haja ironia nesta última pintura, bem como no apelo inserido em Philosophie dans le boudoir: Français(10)... A atitude de Sade durante a Revolução prova bem que ele desejou sinceramente integrar-se numa coletividade; sofreu profundamente com o ostracismo de que foi objeto; sonha com uma sociedade ideal da qual seus gostos individuais não o excluíssem: na verdade, acha ele, estes não constituiriam, para uma comunidade esclarecida, um perigo sério; Zamé garante que não seria incomodado pelos êmulos de Sade: As pessoas de que me fala são raras, não me preocupam. E numa carta, Sade afirma: Não são as opiniões ou os vícios dos particulares que prejudicam o Estado; são os costumes do homem público. O fato é que os atos de libertinagem não influem no mundo, quase se diriam brincadeiras; Sade protege-se atrás da sua insignificância e chega mesmo a sugerir que estaria pronto a sacrificá-los: ditados pelo desafio e pelo ressentimento, eles perderiam o sentido num mundo sem ódio; abolindo as proibições que lhe emprestam o atrativo do crime, suprimir-se-ia a própria lubricidade; talvez Sade tenha verdadeiramente pensado com nostalgia na íntima conversão que nele provocaria a dos outros homens, mas também talvez esperasse que seus vícios fossem aceitos a título excepcional por uma coletividade que, respeitando a singularidade individual, o reconhecesse como exceção.
De qualquer modo, está convencido de que as pessoas que se limitam a vergastar de vez em quando uma mulher são menos nocivas do que um arrematador de impostos. As injustiças firmadas, as prevaricações oficiais, os crimes constitucionais, eis o verdadeiro flagelo; e é esse o cortejo necessário das leis abstratas que pretendem impor-se uniformemente à pluralidade de indivíduos radicalmente separados. Uma justa organização econômica tornaria inúteis códigos e tribunais, porque o crime nasce da necessidade e da desigualdade e desapareceria ao mesmo tempo que seus motivos; é uma espécie de anarquia racional que constitui no entender de Sade o regime ideal; O reinado das leis é inferior ao da anarquia; a maior prova do que digo é a obrigação em que fica qualquer governo de mergulhar ele próprio na anarquia quando deseja refazer a sua constituição... Para abolir as antigas leis vê-se forçado a instaurar um regime revolucionário em que não há leis: desse regime nascem por fim novas leis, mas este segundo estado é, todavia, menos puro que o primeiro, pois dele deriva.
Decerto tal raciocínio não parece muito convincente; mas o que Sade notavelmente compreendeu foi que a ideologia do seu tempo apenas traduzia um sistema econômico, o qual, concretamente transformado, anularia as mistificações da moral burguesa. Bem poucos dos seus contemporâneos desenvolveram, de maneira tão extrema, concepções tão penetrantes.
Todavia, não foi pelo caminho das reformas sociais que Sade definitivamente enveredou; o conjunto de sua vida e de sua obra não se regulou por estes devaneios utópicos; não lhe seria possível acreditar neles por muito tempo, do fundo dos calabouços ou depois do Terror. Os acontecimentos confirmaram sua experiência íntima; o malogro da sociedade não constitui simples acidente. Aliás, torna-se evidente que o interesse por ele concedido a seu possível êxito é inteiramente de ordem especulativa. É o seu próprio caso que o obseda; pouco se preocupa em converter-se, interessa-lhe muito mais ser confirmado em suas preferências. Seus vícios condenam-no à solidão: ele demonstrará a necessidade da solidão e a supremacia do mal. A boa-fé lhe é fácil, porque esse aristocrata desadaptado não encontra em parte alguma homens que sejam seus semelhantes; embora desconfie das generalizações, atribuiu à sua situação o valor de uma fatalidade metafísica; O homem está isolado no mundo. Todas as criaturas nascem isoladas e sem qualquer necessidade umas das outras. Se a diversidade dos indivíduos fosse comparável — como o próprio Sade muitas vezes sugere —, à que diferencia entre si as plantas ou os animais, uma sociedade racional conseguiria dominá-la; bastaria respeitar a singularidade de cada um; mas o homem não sofre apenas a sua solidão: reivindica-a contra todos, de onde se segue que há heterogeneidade de valores não só de uma classe para outra, mas de um indivíduo para outro. Todas as paixões têm dois sentidos, Juliette: um muito injusto em relação à vítima, outro singularmente justo em relação a quem o exerce... E esse antagonismo fundamental não poderá ser ultrapassado porque é a própria verdade. Se os propósitos humanos pretendessem reconciliar-se na comum procura do interesse geral, seriam necessariamente inautênticos, pois não há outra realidade além da do indivíduo fechado em si e hostil a qualquer outro indivíduo que lhe dispute a soberania. O que impede a liberdade do indivíduo de optar pelo bem é que este não existe no céu vazio, nem na terra injusta, nem sequer num horizonte ideal: não está em parte alguma. O mal é um absoluto a que apenas se opõem noções fantásticas, e só há um modo de nos afirmarmos perante ele: assumi-lo.
Isto porque há uma idéia que, através de todo seu pessimismo, Sade repudia ferozmente: a de sofrer. Por isso odeia a hipocrisia resignada que se enfeita com o nome de virtude; de fato, ela é uma submissão estúpida ao reinado do mal, tal como a sociedade o reconstituiu, e nela o homem renuncia conjuntamente à sua autenticidade e à sua liberdade. Sade está em condições de mostrar que a castidade e a temperança nem sequer se justificam pela utilidade; os preconceitos que condenam o incesto, a sodomia e outros caprichos sexuais, visam apenas aniquilar o indivíduo, impondo-lhe um conformismo inepto. Porém, as virtudes máximas que prega o século têm um sentido mais profundo: tentam disfarçar as insuficiências demasiado evidentes da lei. Contra a tolerância, Sade não levanta objeção, decerto porque não vê ninguém exercê-la; mas ataca fanaticamente aquilo que chamamos humanidade e beneficência; são mistificações visando conciliar o que é inconciliável: os insaciados apetites do pobre e a cupidez egoísta do rico. Retomando a tradição de La Rochefoucauld, mostra não passarem elas da máscara sob a qual se disfarça o interesse. Para conter a arrogância dos poderosos, os fracos inventaram a idéia da fraternidade que não assenta em qualquer base sólida: Ora, peço-lhe que me diga se devo amar um ser apenas porque ele existe ou se parece comigo, e por causa destas simples relações hei de subitamente preferi-lo a mim... Quanta hipocrisia nos privilegiados que ostentam edificante filantropia quando consentem na abjeta condição dos oprimidos! Esta falsa sensibilidade estava tão espalhada na época que o próprio Valmont, em casa de Laclos, se enternecia até as
lágrimas praticando a caridade; e é evidentemente essa moda que incita Sade a desencadear contra a beneficência toda sua má-fé e toda sua sinceridade. Decerto ele zomba quando, ao maltratar mulheres, pretende servir os costumes: se fosse permitido aos libertinos molestá-las impunemente — afirma ele — a prostituição se tornaria um ofício tão perigoso que ninguém a abraçaria; mas é com razão que denuncia através desses sofismas a inconseqüência de uma sociedade que protege o que ela condena e que, autorizando a devassidão, leva ao pelourinho o devasso. É com a mesma trágica ironia que ele proclama os perigos da esmola; se os miseráveis não forem reduzidos ao desespero, ameaçam revoltar-se, e o mais seguro seria exterminá-los todos; nesse projeto que atribui a Saint-Fond, Sade desenvolve o célebre panfleto de Swift e certamente não se identifica com seu personagem; contudo, o cinismo daquele aristocrata, que esposa a todo transe os interesses de sua classe, é mais válido a seus olhos que os compromissos dos gozadores envergonhados. Sua idéia é clara: suprimir os pobres ou suprimir a pobreza, mas não perpetuar com meias medidas a injustiça e a opressão; e, sobretudo, não pretender resgatar extorsões, deixando aos despojados um dízimo insignificante. Se os personagens de Sade preferem deixar morrer de fome um desgraçado a sujarem-se com uma esmola que nada lhes custaria, é porque recusam apaixonadamente toda a cumplicidade com os homens de bem cuja consciência se acomoda a preço tão vil.
A virtude não merece qualquer admiração ou gratidão, porque, longe de refletir as exigências de um bem transcendente, serve os interesses dos que a ostentam; é lógico que Sade chega a esta conclusão. Mas afinal de contas, se o interesse é a única lei do indivíduo, por que desprezá-la? Que superioridade tem ela sobre o vício? Sade respondeu muitas vezes e com veemência a esta pergunta; no caso de se escolher a virtude, diz-nos: Que falta de movimento! Que gelo! nada me emociona, nada me perturba... Pergunto eu: isso é gozar? Quanta diferença no partido contrário!, como os meus sentidos são afagados e meus órgãos excitados! E ainda: A felicidade está apenas no que perturba e só o crime perturba. Considerando o hedonismo professado pelo seu século, este argumento é de certo peso; tudo o que se poderia objetar-lhe é que Sade generaliza seu caso particular: não podem algumas almas ser perturbadas também pelo bem? Mas ele recusa esse ecletismo. A virtude só pode proporcionar uma felicidade quimérica... fora dos sentidos não há verdadeira felicidade e nenhum deles é deleitado pela virtude. Tal declaração pode surpreender, visto que Sade fez justamente da imaginação a mola do vício; mas através das fantasias de que se alimenta este apreende uma verdade, e a prova é que ele termina no orgasmo, ou seja, numa sensação firme, enquanto as ilusões de que se nutre a virtude jamais são recuperadas pelo indivíduo de maneira concreta; a sensação, de acordo com a filosofia que Sade toma à sua época, é a única medida da realidade e, se a virtude não desperta nenhuma, é porque não tem qualquer fundamento real; Sade explicou-se ainda mais claramente no seguinte paralelo entre a virtude e o vício: A primeira é quimérica, o outro é real; a primeira resulta dos preconceitos, o outro baseia-se no raciocínio, um me dá t..., não sinto quase nada pela outra. Quimérica, fantástica, a virtude fecha-nos num mundo de aparências, ao passo que sua íntima ligação com a carne garante a autenticidade do que se chama vício. Utilizando o vocabulário de Stirner, ao qual com razão se comparou Sade, dir-se-ia que a virtude aliena o indivíduo nesta entidade vazia, o Homem; só no crime ele se reivindica e se realiza como eu concreto. Se o pobre se resigna, ou tenta em vão lutar por seus irmãos, é manobrado, iludido, um objeto inerte de que a natureza desdenha, não é nada;
é necessário, tal como a Dubois ou Coeur de Fer, tentar passar para o lado dos fortes. O rico que aceita passivamente seus privilégios também só existe à maneira de uma coisa; só abusando dos seus poderes, tornando-se tirano, carrasco, então é alguém; beneficiar-se-á cinicamente da injustiça que o favorece, em vez de se perder em devaneios filantrópicos: Onde estariam as vítimas da nossa infâmia se todos os homens fossem criminosos? Não deixemos nunca de manter esse povo sob o jugo do erro e da mentira — declara Esterval.
Voltamos, portanto, à idéia de que o homem só pode obedecer à natureza má? Sob o pretexto de salvaguardar a sua autenticidade, não assassinaremos sua liberdade? Não; pois se esta não pode contradizer o dado, é capaz de se subtrair a ele para assumi-lo; é numa tentativa análoga à conversão estóica que ela também retoma por sua conta a realidade numa decisão voluntária. Não existe contradição em Sade, por preconizar ao mesmo tempo crime, e se indignar muitas vezes contra a injustiça, o egoísmo ou a crueldade dos homens(11); ele só tem desprezo pelos vícios tímidos, pelas maldades impulsivas que se limitam a refletir passivamente a perversidade da natureza; é para evitar ser mau à maneira de um vulcão ou de um policial, que cumpre tornar-se criminoso; não é o caso de se submeter ao universo, senão de imitá-lo num livre desafio. É essa a atitude reivindicada à beira do Etna pelo químico Almani: Sim, meu amigo, sim, abomino a natureza; e é por conhecê-la bem que a detesto; instruído dos seus medonhos segredos, senti uma espécie de prazer indizível em copiar-lhe os horrores. Imitá-la-ei, mas detestando-a... Suas redes mortíferas estão estendidas apenas sobre nós, tentemos envolvê-la também... Oferecendo-me apenas os seus efeitos, ela ocultava-me todas as suas causas. Restringi-me, portanto, à imitação dos primeiros; não podendo adivinhar o motivo que colocava o punhal em suas mãos, soube arrebatar-lhe a arma e utilizei-a como ela. Este texto dá o mesmo som ambíguo das palavras de Dolmancé: Foi a ingratidão deles que secou meu coração; ele nos recorda que foi no desespero e no ressentimento que Sade se votou ao mal. E é neste ponto que seu personagem se distingue do sábio antigo: não segue a natureza com amor e alegria; copia-a, abominando-a e sem compreendê-la; e ele mesmo se quer sem se aprovar. O mal não é harmonioso; sua essência é dilaceramento.
Este dilaceramento deve ser vivido numa tensão constante; do contrário se cristalizaria em remorso e sob este aspecto constitui um perigo mortal. Blanchot observou que o herói sádico se vota às piores catástrofes desde que por qualquer escrúpulo devolve à sociedade seu poder sobre ele; arrepender-se, hesitar, é reconhecer juízes e, portanto, admitir ser culpado, em vez de se reivindicar como livre autor dos próprios atos; quem consente na passividade merece todas as derrotas que o mundo hostil lhe infligirá. Ao contrário: O verdadeiro libertino adora até as censuras que lhe merecem as suas abomináveis proezas. Não se têm visto mesmo os que chegam a adorar os suplícios que a vingança humana lhes propõe, sofreando-os com alegria e olhando o cadafalso como num trono de glória? Eis o homem no último estágio da corrupção refletida. Nesse estágio supremo, não é apenas dos preconceitos e da vergonha que o homem se liberta, mas de todos os temores. Sua serenidade alcança a do sábio antigo que considerava fúteis as “coisas que não dependem de nós”; mas este se limitava de modo inteiramente negativo a defender-se dos sofrimentos possíveis; o negro estoicismo de Sade promete uma felicidade positiva; por isso Coeur de Fer propõe como alternativa: Ou o crime que nos torna felizes, ou o cadafalso que nos impede de ser desgraçados. Nada pode ameaçar o homem que sabe transformar suas próprias derrotas em triunfos; ele não tem medo de nada porque, para ele, tudo é bom. A brutal artificialidade das coisas não esmaga o homem livre porque não lhe interessa; apenas sua significação lhe concerne e esta só depende dele; um indivíduo que chicoteia ou penetra outro, tanto pode ser o senhor como o escravo; a ambivalência da dor e do prazer, da humilhação e do orgulho, permite ao libertino dominar seja que situação for: por isso Juliette sabe transformar em gozo os mesmos tormentos que acabrunham Justine. No fundo, o conteúdo da experiência carece de importância: o que conta é a intenção com que o indivíduo a anima. Assim o hedonismo termina em ataraxia, o que confirma o paradoxal parentesco entre o sadismo e o estoicismo: a felicidade prometida ao indivíduo resume-se na indiferença. Eu sou feliz, minha querida, desde que me entrego friamente a todos os crimes — diz Bressac. A crueldade surge sob uma luz nova, como uma ascese: Quem sabe tornar-se insensível aos males alheios, torna-se inacessível aos próprios. Não é mais para a perturbação que cumpre tender, mas para a apatia. Sem dúvida, o libertino principiante necessita de emoções violentas para experimentar a verdade da sua existência singular; porém, uma vez que ele a conquista, basta-lhe a forma pura do crime para garantir-lha; Este possui um caráter de grandiosidade e sublimidade que o arrebata e prevalecerá sempre sobre os atrativos monótonos da virtude, tornando inúteis todas as satisfações contingentes que fossemos tentados a extrair dela. Por uma severidade análoga à de Kant e que tem sua origem na mesma tradição puritana, Sade não concebe o ato livre senão alheio a qualquer sensibilidade: se esse ato obedecesse a motivos afetivos, faria ainda de nós os escravos da natureza e não indivíduos autônomos.
Tal escolha é permitida a qualquer indivíduo, seja qual for a sua situação; uma das vítimas encerrada no harém dos frades onde pena Justine, logrou escapar ao seu destino dando provas de seu valor: apunhalou uma das companheiras com uma crueldade que lhe valeu a admiração dos seus senhores e a tornou rainha do serralho; os que ficam do lado dos oprimidos é por baixeza de alma e deve-se recusar-lhes toda a compaixão: Que queres tu que haja de comum entre o que tudo pode e aquele que nada ousa? A oposição dos dois verbos é significativa: ousar, para Sade, é desde logo poder. Blanchot acentuou a austeridade desta moral: quase todos os criminosos de Sade sofrem morte violenta, e é o mérito deles que transforma suas desgraças em glória. Mas, de fato, a morte não é a pior das derrotas, e seja qual for o fim que lhes reserva, Sade assegura a seus heróis um destino que lhes permite realizarem-se. Esse otimismo repousa numa visão aristocrática da humanidade, envolvendo ela própria, em sua crueldade implacável, uma doutrina da predestinação; pois essa qualidade de alma que permite a raros eleitos reinar sobre um bando de condenados, surge como uma graça arbitrariamente dispensada: desde sempre Juliette estava salva e Justine perdida. O mais interessante ainda é que o mérito não poderia acarretar o êxito se não fosse reconhecido; a força de alma de Valérie ou de Juliette de nada lhes serviria se não merecesse a admiração de seus tiranos. Divididos, separados, tem-se, portanto, de admitir que estes se inclinam juntos diante de certos valores; e, com efeito, sob essas figuras diversas cuja equivalência é por Sade garantida, orgasmo-natureza-razão, estes escolhem a realidade; ou mais exatamente ela se lhes impõe; é por sua mediação que o triunfo do personagem fica assegurado; mas o que o salva em último caso é que ele apostou na verdade. Para além de todas as contingências, Sade acredita num absoluto que nunca poderia decepcionar quem o invoca como suprema instância.
Se nem todos os homens abraçam uma moral tão segura, é apenas devido à sua pusilanimidade, pois não se lhe pode opor qualquer objeção válida. Ela não poderia ofender um Deus que não passa de quimera; e, sendo a Natureza divisão, hostilidade, mesmo atacá-la seria conformar-se com ela; cedendo a seus preconceitos naturalistas, Sade escreveu: O único verdadeiro crime seria ultrajar a natureza, e acrescenta logo em seguida: É possível imaginar que a natureza nos desse a possibilidade de um crime que a ultrajasse? Tudo o que acontece é integrado por ela; o próprio assassinato ela o acolhe com indiferença, pois o princípio de vida de todos os seres outro não é que o da morte; esta morte é apenas imaginária. Só o homem atribui importância à sua própria existência, mas ele poderia aniquilar totalmente a sua espécie sem que o universo experimentasse por isso a menor alteração; ele pretende possuir um caráter sagrado que o tornaria intocável, mas não passa de um animal entre outros. Só o orgulho do homem é que erigiu o assassínio em crime. A bem dizer, a defesa de Sade é tão enérgica que termina negando ao crime todo o caráter criminoso; ele próprio acaba por compreendê-lo: a última parte de Juliette é um esforço convulsivo para reanimar a chama do Mal; porém vulcões, incêndios, veneno, peste, se não há Deus, se o homem é apenas um sopro, se a natureza consente em tudo, as piores devastações caem na indiferença. A impossibilidade de ultrajar a natureza é, na minha opinião, o maior suplício do homem! — geme Sade. E se ele apenas houvesse apostado no horror diabólico do crime, sua ética se saldaria por um revés total; mas se ele próprio subscreve essa derrota, é porque trava ainda outra batalha: sua profunda convicção de que o crime é bom.
E em primeiro lugar, quanto à natureza ele não é apenas inofensivo: serve-a. Sade explica em Juliette que o espírito dos três reinos, caso não houvesse obstáculos, se tornaria tão violento a ponto de paralisar a marcha do universo: Não haveria mais gravitação nem movimento; levando em seu seio a contradição, as perversidades humanas arrancam-no a essa estagnação que ameaçaria também uma sociedade muito virtuosa. Sade leu certamente a Fábula das Abelhas de Mandeville, que tivera no começo do século grande êxito; o autor demonstrava nela que as paixões e os crimes dos particulares ajudam a prosperidade pública, e são até os maiores bandidos que trabalham mais ativamente para o bem comum; quando uma conversão intempestiva fazia triunfar a virtude, a colméia ficava arruinada. Sade também expôs muitas vezes que uma coletividade que caísse na virtude se veria ao mesmo tempo precipitada na inércia. Há aqui como um pressentimento da teoria hegeliana, segundo a qual não se poderia abolir “a inquietação do espírito” sem provocar o fim da história. Em Sade, porém, a imobilidade aparece não como plenitude congelada senão como pura ausência; a humanidade obstina-se em cortar pelas convenções de que se cercam todos os seus vínculos com a natureza, e acabaria sendo um pálido fantasma se algumas almas resolutas não mantivessem em seu seio e contra sua vontade os direitos da verdade que é divisão, guerra, agitação; já basta que nossos sentidos limitados nos impeçam de alcançar a realidade em seu âmago — diz Sade no texto singular em que nos compara todos a cegos — não nos mutilemos ainda mais por gosto, tentemos ultrapassar nossos limites: O ser mais perfeito que podemos conceber será aquele que mais se afastar de nossas convenções e as considerar mais desprezíveis. Se a depusermos no seu contexto, esta declaração lembra a reivindicação de Rimbaud em favor de um “desregramento sistemático” de todos os sentidos, e também as tentativas dos surrealistas para penetrar, além dos artifícios humanos, no coração misterioso do real. Porém é mais como moralista do que como poeta que Sade tenta quebrar a prisão das aparências. A sociedade mistificadora e mistificada contra a qual se insurge invoca o “se” heideggeriano no qual se abisma a autenticidade da existência, e também nele se trata de recuperá-la por uma decisão individual. Estas comparações não são gratuitas. Cumpre situar Sade na grande família dos que para além da “banalidade da vida quotidiana” desejam conquistar uma verdade imanente a este mundo. Nessa perspectiva o crime aparece-lhe como um dever: Numa sociedade criminosa, é preciso ser criminoso. Esta fórmula resume sua ética. Pelo crime, o libertino recusa toda cumplicidade com as torpezas do dado, de que a massa é apenas o reflexo passivo, portanto abjeto; ele impede a sociedade de adormecer na injustiça e cria um estado apocalíptico que obriga todos os indivíduos a assumir, numa tensão incessante, sua separação, e, portanto, sua própria verdade.
É, todavia, em nome do indivíduo que se poderia, parece, erguer contra Sade as objeções mais convincentes, porque ele é bem real e o crime o ultraja realmente. Neste ponto o pensamento de Sade revela-se extremado: nada possui verdade para mim além do que está envolto na minha experiência, e a esta a íntima presença de outrem escapa radicalmente, não me concernindo portanto e não podendo ditar-me nenhum dever: Zombamos do tormento dos outros; e o que poderia ter de comum conosco esse tormento? E ainda: Não há comparação alguma entre o que experimentam os outros e o que nós sentimos; a dor mais intensa nos outros deve certamente ser nula para nós, e o mais leve afago do prazer por nós experimentado nos comove. O fato é que os únicos laços sólidos entre os homens são os que eles criam transcendendo-se num mundo comum por projetos comuns; o sensualismo hedonista que o século XVIII professa não propõe ao indivíduo outro projeto que o de “proporcionar a si sensações e sentimentos agradáveis”, cristaliza-o na sua solitária imanência. Numa passagem de Justine, Sade mostra-nos um cirurgião que tenciona dissecar a filha para ajudar o progresso da ciência, e, portanto, da humanidade: apreendida no seu devir transcendente, esta tem portanto um valor a seus olhos; mas reduzido à sua vã presença em si, o que é um homem? Um puro fato despojado de qualquer valor, que me diz tanto respeito quanto uma pedra inerte. O próximo não é nada para mim: não há a menor relação entre ele e mim.
Estas declarações parecem contraditórias com a atitude real de Sade; salta aos olhos que, se nada houvesse de comum entre o tormento da vítima e o carrasco, este não poderia extrair daí nenhum prazer. Mas na verdade o que Sade contesta é a existência a priori de uma dada relação entre mim e o outro sobre o qual minha conduta deveria abstratamente regular-se; ele não nega a possibilidade de estabelecer alguma, e se recusa a outrem um reconhecimento ético baseado nas falsas noções de reciprocidade e universalidade, é para se autorizar a quebrar concretamente as barreiras carnais que isolam as consciências. Cada uma testemunha apenas por si; o preço que ela se atribui não lhe permite invocar qualquer direito para impor a outrem: mas ela pode reivindicá-lo de maneira singular e ativa em atos. É o partido que escolhe o criminoso; e pela violência de sua afirmação, tornando-se real para o outro ele revela também o outro como existindo realmente. Cumpre, todavia, notar que — muito diferentemente do conflito descrito por Hegel — este processo não comporta para o indivíduo nenhum risco: ele não põe em jogo sua primazia e, aconteça o que acontecer, não aceitará senhor; vencido, retomará a uma solidão que acabaria pela morte, mas ele permaneceria soberano.
Assim, o outro não representa para o déspota um perigo que poderia atingi-lo no âmago de seu ser; contudo, esse mundo estranho de que ele está excluído irrita-o, quer penetrá-lo.
Paradoxalmente, nesse domínio interdito, é-lhe permitido suscitar acontecimentos, e a tentação é tanto mais vertiginosa quanto estes serão incomensuráveis com sua experiência. Sade numerosas vezes insistiu nesse ponto: não é a desgraça de outrem que exalta o libertino, mas o saber-se autor dela; há nisso para ele muito mais que um prazer diabólico abstrato: quando ele trama suas sombrias maquinações, vê sua liberdade metamorfosear-se para outrem em destino; e como a morte é mais segura que a vida, e o sofrimento que a felicidade, é nas perseguições e no assassínio que ele assumirá esse mistério. Mas impor-se à vítima estupefata sob a figura da fatalidade não é o bastante; enganada, mistificada, pode-se possuí-la, mas só externamente; revelando-se ela, o carrasco incita-a a manifestar nos gritos ou súplicas sua liberdade; se esta não se revela, a vítima é indigna da tortura, é morta ou esquecida; pode também suceder que pela violência de sua revolta, fuga, suicídio ou vitória, ela escape ao atormentador; o que este reclama é que, oscilando da recusa para a submissão, rebelde ou consentindo, ela reconheça de qualquer modo na liberdade do tirano seu destino; então está ligada a ele pelo mais estreito dos laços, formam verdadeiramente um par.
Há casos mais raros em que a liberdade da vítima, sem se furtar ao destino que lhe cria o tirano, consegue sobrepujá-lo. Muda o sofrimento em prazer, a vergonha em orgulho, torna-se uma cúmplice. É então que o devasso se acha em pleno auge: Não fui para um espírito libertino prazer mais vivo do que fazer prosélitos. Depravar uma criatura inocente é evidentemente um ato satânico; mas dada a ambivalência do mal, ganhando-lhe um adepto opera-se também uma autêntica conversão. O roubo da virgindade, entre outros, surge, a esta luz, como uma cerimônia de iniciação. Mesmo que para imitar a natureza seja preciso ultrajá-la, embora o ultraje se anule já que ela mesma o reclama, ao violentar um indivíduo, forçamo-lo a assumir sua separação, e através disso ele encontra uma verdade que o reconcilia com seu antagonista. Carrasco e vítima se reconhecem como semelhantes no espanto, na estima e até na admiração. Tem-se justamente mostrado que jamais existe aliança definitiva entre os libertinos de Sade; suas relações indicam uma constante tensão; mas o fato de Sade fazer triunfar sistematicamente o egoísmo sobre a amizade não impede que ele dote esta de uma realidade. Noirceul faz muita questão de prevenir Juliette de que está preso a ela apenas por causa do prazer que encontra em sua companhia: mas tal prazer implica entre ambos uma relação concreta; cada qual se sente confirmado em si mesmo pela presença de um alter ego, é uma absolvição e uma exaltação. A devassidão coletiva realiza entre os libertinos de Sade uma verdadeira comunhão: é através da consciência dos outros que cada qual apreende o sentido de seus atos e sua própria figura, é numa carne estranha que experimento a minha; é então que na verdade o próximo existe para mim. O escândalo da coexistência não se deixa pensar, mas pode-se vencer-lhe o mistério pela maneira como Alexandre corta o nó górdio: é necessário instalar-se nele por atos. Que enigma é o homem! — Sim, meu, amigo, e foi isso que levou um homem de muito espírito a dizer que vale mais f... que compreendê-lo. O erotismo aparece em Sade como um modo de comunicação, o único válido; pode-se dizer, parodiando uma frase de Claudel, que em Sade “o pênis é o caminho mais curto de uma alma para outra”.
7. Cf. Sade: É o horror, a imundície, a coisa repugnante que agrada quando se f...; ora, onde se encontrará melhor do que num objeto viciado?... Muitas pessoas preferem para os seus gozos uma mulher velha, feia e até malcheirosa a uma jovem viçosa e linda.
8. A Natureza
9. Citado por Maurice Reine: Le Marquis de Sade, pág. 83.
10. 0 Afirma-se que Sade não endossa esta declaração, porquanto a põe na boca do Cavaleiro; mas o cavaleiro limita-se a ler um texto que Dolmancé, porta-voz de Sade, se reconhece autor.
11. Neste ponto a analogia é chocante com Stirner, que condena também o crime vulgar, gabando apenas aquele em que se realiza a revolta do eu.
continua...