sexta-feira, 27 de junho de 2008

Por trás das obras de Sade 2


O que há por trás das obras do Marquês de Sade
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“Os 120 dias de Sodoma” traz seiscentas perversões, algumas descritas pela primeira vez. É mais do que um catálogo de práticas e inclinações estranhas ou ferozes. Sade o imaginou na solidão das celas em que ficou preso. Muitos anos depois a observação científica comprovou-se que não se tratava de delírios, mas de realidades. Sade descobriu realidades que, por mais explosivas e atrozes que nos pareçam, não deixam de ser nossas.
“O principal interesse da obra de Sade é de ordem filosófica. Sua originalidade maior consiste em ter pensado o erotismo como uma realidade total, cósmica, quer dizer, como a realidade. Seu pensamento, não menos rigoroso, é ao mesmo tempo crítico e sistemático”. Lês 120 Journées de Sodome, escrito no final de 1785, numa sombria cela da Bastilha é considerado uma espécie de bíblia das propostas de Sade: quatro libertinos – os maiores e mais experientes devassos da França setecentista – associam-se para levar a termo o projeto de conhecer, representar e praticar “todas as paixões que existem na face da Terra”. São 46 pessoas – entre prostitutas, súditos, adolescentes, velhos, cozinheiros e jovens que passam 120 dias no castelo. Cada mês é dedicado a uma classe de paixão – simples, complexas, criminosas e assassinas, e cada dia a cinco de suas modalidades. Com isso, ao longo da estadia são apresentadas seiscentas paixões, compondo uma seqüência da qual decorre justamente a idéia de “antologia dos gostos”.
Para o poeta Octávio Paz, “Sade é um autor que merece ser lido. É um autor perigoso? Não acredito que haja autores perigosos; melhor dizendo, o perigo de certos livros não está neles próprios e sim nas paixões de seus leitores. Além do mais, Sade é um autor austero e suas obras procuram mais a aprovação de nosso juízo do que a cumplicidade de nossos sentidos. Sade não quis comover, exaltar ou transformar: quis convencer”.
OBRA QUE ASSOMBRA

“A obra de Sade ainda nos assombra tanto pela imensidade de suas negações como pelo radicalismo monomaníaco de sua afirmação central: o prazer é o agente que guia e move os atos e pensamentos dos homens e das mulheres; e o prazer é intrinsecamente destruidor. Essa idéia não era nova quando Sade a formulou e é sobretudo uma idéia discutível. A interdição que pesava sobre suas obras impedia que ele fosse cabalmente compreendida e discutida. Levantadas essas proibições, passa a ser uma opinião entre outras”.
Existem três versões do romance. "Justine ou As desgraças da virtude". Justine é irmã da perversa e libertina Julietta, heroína de "A Prosperidade do Vício". Em Histoire de Juliette, o romance narra, de forma lenta e progressiva, a ascensão da personagem na carreira da libertinagem. No percurso ascendente de Juliette, destaca-se sua admiração ao clube secreto (Sociedade dos Amigos do Crime), onde foi efetivada somente depois da libertina submeter-se a uma série de provas com todos os protocolos que tal processo exige, como num ritual de iniciação.
Para o poeta Octávio Paz “a importância de Sade, mais do que literária, é psicológica e filosófica (...) Sade é um caso. Tudo nele é imenso e único, inclusive as repetições. Por isso nos fascina e alternadamente nos atrai e nos repele, nos irrita e nos cansa. É uma curiosidade moral, intelectual, psicológica e histórica”.
Criador de novelas extremamente imaginativas em que descreve ações eróticas caracterizadas por torturas e violências físicas, o controverso nobre francês viveu mais de duas décadas encarcerado e, posteriormente, se tornou motivo de estudos de Apollinaire, precursor do surrealismo e da feminista Simone de Beauvoir, entre outros. A libertinagem sexual não era um privilégio de Sade, mas a marca de uma época.
A França do século XVIII estava imersa em orgias e depravações organizadas por nobres e membros do clero. O arcebispo de Narbonne, o abade Dubois e o célebre cardeal Richelieu são apenas alguns exemplos. Os excessos chegaram a tal ponto que se tornaram insuportáveis. De certa maneira, Sade pode ser visto como um bode expiatório. Considerá-lo um momento e uma aberração era uma maneira de purificar uma sociedade em que os limites entre o liberado e o proibido eram muito tênues.

Por trás das obras de Sade 1


O que há por trás das obras do Marquês de Sade
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O Marquês de Sade foi um prolífico escritor que, tendo passado 27 de seus 74 anos de vida em prisões e sanatórios criou uma violenta literatura em que prazer e dor, crime e satisfação pessoal, misturam-se nas obsessivas orgias e flagelações de seus personagens.
Depois que Guillaume Apollinaire, Georges Bataille, Camus, Simone de Beauvoir, Michel Foucault, Lester G. Crocker, Barthes, Pasolini, Yukio Mishima, Ingmar Bergman e Camille Paglia terem aberto ainda mais as portas, louvar o universo depravado de Sade, tornou-se quase um lugar-comum. A reabilitação de Sade constitui a consagração final. Afirma-se agora que ele foi o mais liberto de todos os revolucionários, um grande moralista da transgressão e um poeta da palavra sem dimensão moral.

A pornografia francesa do século 18 não tem limites, porém não faz da crueldade seu impulso principal. O marquês de Sade difere dos outros precisamente quanto ao sentido da palavra derivada de seu nome. Trata-se do único sádico. Essa associação sistemática da gratificação sexual com a perversidade, a dor, a tortura e o assassinato é uma novidade na história social.
No ensaio sobre Sade, o filósofo Roger Shattuck escreveu: “O divino marquês representa um conhecimento proibido que não podemos proibir. Conseqüentemente, devemos rotular suas obras cuidadosamente: veneno potencial, poluidor de nosso ambiente moral e intelectual. Mais de dois séculos depois de questionar duramente os valores de sua época, ao preço de anos de prisão em diferentes estabelecimentos penais, sob três diferentes regimes políticos, Donatien-Alphonse-François (1740/1814), o marquês de Sade acabou verbete de dicionário para designar perversidades inomináveis. Consumida, o mais das vezes, como esquiza pornografia, a “filosofia” bélica e insultuosa de Sade, pretendendo ampliar os recém-conquistados valores da Revolução Francesa, virou de ponta-cabeça a moral judaico-cristão em qualquer lugar em que se imponha ou seja professada, será objeto, no mínimo, de perseguição policial. Não há lugar no mundo que abrigue as radicalidades deste marquês de mais de 200 anos. Vamos conhecer um pouco mais desse autor que revirou a moral de sua época e saber que o que ele fez foi mostrar o reflexo da sociedade que vivia. Fique atento!

VENENOS DA ALMA
Os livros do Marquês de Sade foram escritos no século dezoito. Por causa deles foi preso e chamado de monstro. Sade só foi acolhido no jardim das belas letras depois que o poeta Guilhaume Apollinaire, em 1909, escreveu um alentado ensaio sobre sua vida e obra.
Em 1836 o poeta Émile Chevé escreveu umas linhas delicadas sobre o marquês, em que dizia que, após ele, ninguém, jamais, poderia reunir “em semelhante buquê todos os venenos da alma”.
Em 1865 o psiquiatra Krafft Ebing, na obra “Psychopathia Secualis” escreveu a respeito de “sadismo”... “para designar uma categoria de perverso que procura o prazer na dor infligida”. Quem também se interessou pelo marques foi o filósofo Swimburne.
Mas no século XX, depois do famoso Apollinaire, o marquês via ressuscitar. E são particularmente notáveis as leituras que dele fazem Georges Bataille e Pierre Klossowski. Em seguida, Simone de Beauvoir, Pierre Sollers, Alain Robbe-Grillet, Jean Pierre Faye, Roland Barthes e tantos outros nomes mais pensam Sade. E pensar Sade é caminhar em cima de linhas que marginam com o abismo. Abismo da consciência, do coração, do sexo e das relações entre os homens.
“Sade é valorizado como um sexólogo. Seu objetivo não era excitar o leitor mas, como toda literatura erótica de seu tempo, filosofar através do erotismo”, escreveu Eliane Robert Morais no seu ensaio Sade - A Felicidade Libertina.
O que em geral se esquece é que Sade viveu sua atribulada vida em plena efervescência do movimento iluminista e enciclopedista, ou seja, no momento em que o conhecimento passa a ser um valor de emancipação do homem, que superaria as trevas do não-conhecido. O projeto de Sade não é coletivo mas se pauta pelo mesmo princípio: superar dogmas e preconceitos para conhecer melhor, só que revelando partes pouco desejáveis do indivíduo e da sociedade.
Fonte: blog do gutemberg

quarta-feira, 25 de junho de 2008

"O estratagema do amor"

Geoffrey Rush e Kate Winslet em "Contos Proibidos do Marquês de Sade"



O estratagema do amor
Marquês de Sade





De todos os desvios da natureza, o que fez mais pensar, o que pareceu mais estranho a estes meio-filósofos que querem analisar tudo sem nada compreender, dizia um dia a uma das suas melhores amigas a Menina de Villebranche de quem vamos ter ocasião de nos ocuparmos em seguida, é este gosto estranho que mulheres duma certa construção, ou dum certo temperamento, conceberam por pessoas do seu sexo. Embora muito antes da imortal Safo e depois dela não tenha havido uma só região do universo nem uma única cidade sem nos oferecer mulheres com este capricho e embora, perante provas de tal força, parecesse mais razoável acusar a natureza de singularidade do que estas mulheres de crime contra a natureza, nunca todavia se deixou de vituperá-las, e sem o ascendente imperioso que sempre teve o nosso sexo, quem sabe se algum Cujas, algum Bartole, algum Luís IX não teriam imaginado fazer contra estas sensíveis e infelizes criaturas leis iníquas, como as que se lembraram de promulgar contra os homens que, construídos no mesmo gênero de singularidade, e por tão boas razões sem dúvida, julgaram poder bastar-se a si próprios, e imaginaram que a mistura dos sexos, muito útil à propagação, podia muito bem não revestir esta mesma importância para os prazeres. Deus nos livre de tomar qualquer partido a tal respeito... não é, minha cara?, continuava a bela Augustine de Villebranche atirando a esta amiga beijos que pareciam, contudo, um tanto suspeitos, mas em vez de iniquidades, em vez de desprezo, em vez de sarcasmos, todas armas perfeitamente embotadas nos nossos dias, não seria infinitamente mais simples, numa ação tão totalmente indiferente à sociedade, tão igual a Deus, e talvez mais útil do que se acredita na natureza, deixar cada um agir a seu gosto... Que se pode recear desta depravação?... Aos olhos de todo o ser verdadeiramente sensato, parecerá que ela pode evitar maiores, mas nunca se provará que possa conduzir a perigosas... Ah, justos céus, receia-se que os caprichos destes indivíduos de um ou outro sexo façam acabar o mundo, que ponham em leilão a preciosa espécie humana, e que o seu pretenso crime a aniquile, por não proceder à sua multiplicação? Reflita-se um pouco sobre isto e ver-se-á que todas estas perdas quiméricas são inteiramente indiferentes à natureza, que não só não as condena, mas nos prova através de milhares de exemplos que as quer e as deseja; ah, se estas perdas a irritassem, tolerá-las-ia em milhares de casos, permitiria, se a progenitura lhe fosse tão essencial, que uma mulher só pudesse servir para isso durante um terço da sua vida e que ao sair das suas mãos a metade dos seres que ela produz tivessem o gosto contrário a essa progenitura no entanto exigida por ela? Digamos melhor, permite que as espécies se multipliquem, mas não o exige, e bem segura de que terá sempre mais indivíduos do que necessita, está longe de contrariar as inclinações dos que não têm a propagação como uso e que se repugnam de conformar-se a ela. Ah! deixemos agir esta boa mãe, convençamo-nos bem de que os seus recursos são imensos, de que nada que façamos a ultraja e de que o crime que atentaria contra as suas leis nunca estará nas nossas mãos. A Menina Augustine de Villebranche de que acabamos de ver uma parte da lógica, senhora das suas ações com a idade de vinte anos, e podendo dispor de trinta mil libras de rendas, decidira-se por gosto a nunca se casar; o seu nascimento era bom, sem ser ilustre, era filha única dum homem que enriquecera nas índias e morrera sem jamais a ter podido convencer ao casamento. Não o devemos dissimular, muito entrava desta espécie de capricho, de que Augustine acabava de fazer a apologia, na repugnância que testemunhava pelo himeneu; seja conselho, seja educação, seja disposição de órgão ou calor de sangue (nascera em Madras), seja inspiração da natureza, seja tudo o que se quiser enfim, a Menina de Villebranche detestava os homens, e totalmente entregue ao que os ouvidos castos entenderão pela palavra safismo, só encontrava volúpia com o seu sexo e só se satisfazia com as graças do desprezo que sentia pelo Amor. Augustine era uma verdadeira perda para os homens; alta, feita para ser pintada, os mais belos cabelos castanhos, o nariz um pouco aquilino, os dentes soberbos, e olhos duma expressão, duma vivacidade... a pele duma delicadeza, duma brancura, todo o conjunto numa palavra duma espécie de volúpia tão atraente... que era bem certo que vendo-se tão feita para dar amor e tão determinada a não o receber, podia muito naturalmente escapar a muitos homens um número infinito de sarcasmos contra um gosto, aliás muito simples, mas que privando, apesar disso, os altares de Safo duma das criaturas do universo mais bem feitas para os servir, devia necessariamente indispor os sectários dos templos de Vênus. A Menina de Villebranche ria satisfeita de todas estas censuras, de todos estes maus propósitos, e nem por isso se entregava menos aos seus caprichos. A mais elevada de todas as loucuras - dizia ela -, é envergonharmo-nos das inclinações que recebemos da natureza; e fazer pouco dum qualquer indivíduo que tem gostos singulares, é absolutamente tão bárbaro como o seria mofar dum homem ou duma mulher saído zarolho ou coxo do seio da mãe, mas insinuar estes princípios razoáveis a néscios é empreender parar o curso dos astros. Existe uma espécie de prazer para o orgulho em rir dos efeitos que não se tem, e estes gozos são tão doces ao homem e particularmente aos imbecis, que é muito raro vê-los renunciar-lhes... Isso provoca, aliás, maldades, frios ditos de espírito, fracos trocadilhos, e para a sociedade, ou seja para uma coleção de seres que o tédio junta e que a estupidez modifica, é tão doce falar duas ou três horas sem nada dizer, tão delicioso brilhar à custa dos outros e anunciar estigmatizando-o um vício que se está muito longe de ter... é uma espécie de elogio que se pronuncia taticamente sobre si mesmo; por este preço consentem até em se unir aos outros, em fazer cabala para esmagar o indivíduo cujo grande erro é o de não pensar como o comum dos mortais, e retiram-se para casa inchados do espírito que mostraram, quando só provaram radicalmente por uma tal conduta pedantismo e tolice. Assim pensava a Menina de Villebranche e muito afirmativamente decidida a nunca se constranger, rindo-se dos preconceitos, bastante rica para se bastar a si própria, acima da sua reputação, visando epicuriamente uma vida voluptuosa e de modo algum as beatitudes celestes nas quais acreditava muito pouco, ainda menos uma imortalidade demasiado quimérica para os seus sentidos, rodeada por um pequeno círculo de mulheres pensando como ela, a querida Augustine entregava-se inocentemente a todos os prazeres que a deleitavam. Tivera muitos apaixonados, mas todos tinham sido tão maltratados, que se estava enfim em vésperas de renunciar a esta conquista, quando um jovem chamado Franville, pouco mais ou menos da sua categoria social e tão rico como ela, tendo ficado loucamente amoroso, não só não se desgostou com os seus rigores mas determinou-se mesmo muito seriamente a não abandonar a praça enquanto ela não fosse conquistada: participou o seu projeto aos amigos, riram-se dele, manteve que conseguiria, desafiaram-no e ele tentou. Franville tinha dois anos a menos do que a Menina de Villebranche, ainda quase nenhuma barba, uma linda figura, as feições mais delicadas, os mais belos cabelos do mundo; quando o vestiam de moça, ficava tão bem neste trajo que enganava sempre os dois sexos, e várias vezes recebera, de uns por engano, de outros conscientes do que faziam, uma quantidade de declarações tão preciosas, que poderia no mesmo dia tornar-se o Antínoo de qualquer Adriano ou o Adónis de qualquer Psiqué. Foi assim vestido que Franville imaginou seduzir a Menina de Villebranche; vamos ver como se houve. Um dos maiores prazeres de Augustine era vestir-se de homem no carnaval, e correr todas as assembléias sob este disfarce tão análogo aos seus gostos; Franville que fizera espiar os seus passos e tivera até aí a precaução de muito pouco se lhe mostrar, soube um dia que aquela que adorava devia ir nessa mesma noite a um baile dado por associados da Ópera, onde todas as máscaras podiam entrar, e que seguindo o uso desta encantadora moça, ela estaria de capitão de dragões. Disfarça-se de mulher, faz-se embelezar, compor com toda a elegância e todo o cuidado possível, põe muito pó de arroz, sem máscara, e seguido duma das suas irmãs muito menos bela do que ele, entra assim na assembléia onde a amável Augustine apenas ia procurar aventuras. Franville não dera três voltas à sala quando foi logo distinguido pelos olhos conhecedores de Augustine. Quem é esta bela moça? - disse a Menina de Villebranche à amiga que a acompanhava. - Parece-me que nunca a vi em parte nenhuma, como pôde pois escapar-nos uma tão bela criatura? E mal estas palavras são ditas, Augustine faz tudo quanto pode para entabular conversa com a falsa Menina de Franville que primeiro foge, volteia, evita, escapa e tudo isso para se fazer desejar mais ardentemente; por fim dá-se o encontro, as impressões vulgares mantêm de início a conversa que, pouco a pouco, se torna mais interessante. - Está um calor horrível no baile - disse a Menina de Villebranche -, deixemos as nossas companheiras juntas e vamos tomar um pouco de ar nestes gabinetes onde jogamos e nos refrescamos. - Ah! Senhor - disse Franville à Menina de Villebranche continuando a fingir tomá-la por um homem -, na verdade, não me atrevo, apenas tenho aqui a minha irmã, mas sei que a minha mãe deve vir com o esposo que me destina, e se uma ou outro me vissem consigo, seria um sarilho... - Bom, bom, é preciso sobrepor-se a todos esses terrores de criança... Que idade tem, belo anjo? - Dezoito anos, senhor. - Ah! Respondo-lhe que aos dezoito anos se deve ter adquirido o direito de fazer tudo o que se quiser... vamos, vamos, siga-me e nada tema... - e Franville deixa-se conduzir. - O quê, encantadora criatura -, continua Augustine, conduzindo o indivíduo que julga ser uma moça para os gabinetes contíguos à sala do baile -, o quê, vai-se casar realmente... como a lastimo... e quem é essa personagem que lhe destinam, um maçador aposto... Ah, como esse homem será afortunado e como gostaria de estar no seu lugar! Consentiria em desposar-me, a mim, diga-o francamente, filha celeste. - Ai de mim, sabe-o Senhor, quando se é jovem seguem-se os movimentos do coração? - Está bem, mas recuse-o a esse homem desprezível, faremos juntos um mais íntimo conhecimento, e se chegarmos a acordo... porque não nos entenderíamos? Não preciso, graças a Deus, de nenhuma autorização... embora só tenha vinte anos, sou senhor dos meus bens e se pudesse inclinar os seus pais a meu favor, talvez antes de oito dias estivéssemos os dois ligados por laços eternos. Assim conversando, tinham saído do baile, e a hábil Augustine, que não levava a sua presa para a envolver nas malhas dum amor perfeito, tivera o cuidado de a conduzir para um gabinete muito isolado, o qual graças às combinações que fazia com os organizadores do baile, tinha sempre o cuidado de reservar. - Oh, meu Deus! - disse Franville, logo que viu Augustine fechar a porta deste gabinete e apertá-lo nos braços. - Oh, meu Deus, que pretende fazer?... Uma entrevista a sós, Senhor, e num lugar tão retirado... deixe-me, deixe-me, suplico-lhe, ou gritarei por socorro. - Vou retirar-te o poder, anjo divino - disse Augustine imprimindo a sua bela boca sobre os lábios de Franville -, grita agora, grita se podes, e o bafo puro do teu hálito de rosa ainda mais incendiará o meu coração. Franville debatia-se muito fracamente: é difícil mostrar cólera quando se recebe assim ternamente o primeiro beijo de tudo quanto se adora. Augustine, encorajada, atacava com mais força, empregava aquela veemência que realmente apenas é conhecida das mulheres deliciosas seduzidas por esta fantasia. Em breve as mãos passeiam, Franville representando a mulher que cede, deixa igualmente vaguear as suas. Toda a roupa se afasta, e os dedos chegam quase ao mesmo tempo onde cada um deles julga encontrar o que lhe convém... Então Franville mudando subitamente de papel: - Oh, justos céus - exclama -, com que então não passa duma mulher... - Horrível criatura - disse Augustine pondo a mão sobre coisas cujo estado não pode sequer permitir a ilusão -, dei-me eu tanto trabalho para achar um desprezível homem... é preciso ser muito infeliz. - Na verdade não mais do que eu - disse Franville, arranjando-se e mostrando o mais profundo desprezo -, uso o disfarce que pode seduzir os homens, amo-os, procuro-os, e só encontro uma p... - Oh, p..., não - disse azedamente Augustine -, nunca o fui em toda a minha vida, não é quando se abomina os homens que se pode ser tratada dessa maneira - Como, é mulher e detesta os homens? - Sim, e isso pela mesma razão que o senhor é homem e abomina as mulheres. - A coincidência é única, eis tudo o que se pode dizer. - É bem triste para mim - disse Augustine com todos os sintomas do mau humor mais marcado. - Na verdade, Menina, é ainda mais fastidiosa para mim - disse amargamente Franville - eis-me manchado para três semanas; sabia que na nossa ordem fazemos voto de nunca tocar numa mulher? - Parece-me que podem sem se desonrarem tocar numa como eu. - Por minha fé, minha bela - continua Franville -, não vejo que haja grandes motivos para excepção e não acho que um vício lhe possa merecer um mérito a mais. - Um vício... mas é o senhor quem reprova os meus... quando possui outros tão infames? - Olhe - disse Franville -, não nos querelemos, estamos os dois metidos no jogo, o melhor é separarmo-nos e nunca mais nos vermos. E dizendo isto Franville preparava-se para abrir as portas. - Um momento, um momento - disse Augustine, impedindo-o de abri-las -, vai divulgar a nossa aventura a toda a terra, aposto. - Talvez me divirta a fazê-lo. - De resto, que me importa, graças a Deus estou acima dos murmúrios, saia, Senhor, saia e diga tudo o que lhe agradar... - E detendo-o uma vez mais -: Sabe - disse sorrindo -, que esta história é muito extraordinária... enganamo-nos os dois. - Ah! o erro é muito mais cruel - disse Franville - para as pessoas com o meu gosto do que para as que têm o seu... e este vazio causa-nos repugnância... - Por minha fé, meu caro, creia que o que me oferece nos desagrada pelo menos tanto; vamos, a repugnância é idêntica, mas a aventura é deveras divertida, temos de concordar? Volta ao baile? - Não sei. - Por mim não volto mais - disse Augustine -, fez-me sentir coisas... desgostou-me... vou-me deitar. - Já não era sem tempo. - Mas tenha ao menos a delicadeza de me emprestar o seu braço até minha casa, habito a dois passos, não tenho o meu coche, não me vai deixar ficar aqui. - Não, acompanhá-la-ei de boa vontade - disse Franville -, os nossos gostos não nos impedem de ser corretos... quer a minha mão?... Ei-la. - Só aproveito porque não encontro melhor por agora. - Fique bem certa que por mim só lha ofereço por delicadeza. Chegam à porta da casa de Augustine e Franville prepara-se para se despedir. - Na verdade, o senhor é delicioso - disse a Menina de Villebranche -, com que então deixa-me na rua. - Mil perdões - disse Franville -, não ousava. - Ah, como são bruscos estes homens que não gostam das mulheres! - É que eu - disse Franville, dando todavia o braço à Menina de Villebranche até ao seu apartamento -, é que eu, Menina, gostava de voltar depressa ao baile para reparar a minha tolice. - A sua tolice, sente-se então muito aborrecido por me ter encontrado? - Não digo tanto, mas não é verdade que podíamos ambos ter achado infinitamente melhor? - Sim, tem razão - disse Augustine entrando enfim em casa -, tem razão, senhor, eu sobretudo... porque receio bastante que este funesto encontro venha a custar a felicidade da minha vida. - O quê, não está então bem segura dos seus sentimentos? - Ontem estava-o. - Ah! não acredita muito nas suas máximas. - Não acredito em nada, está a enervar-me. - Está bem, eu saio, Menina, eu saio... Deus me livre de a incomodar durante mais tempo. - Não, fique, ordeno-lhe, poderá uma vez na vida obedecer a uma mulher? - Eu - disse Franville sentando-se por condescendência -, nada há que não faça, já lho disse, sou educado. - Sabe que é horrível de na sua idade ter gostos tão perversos? - Julga que seja decente de na sua os ter tão singulares? - Oh, é muito diferente, nós, é recato, é pudor... é orgulho mesmo se o preferir, é o receio de se entregar a um sexo que só nos seduz para nos dominar... Todavia os sentidos falam e arranjamo-nos entre nós; se tudo dissimulamos bem revestimo-nos dum verniz de discrição que muitas vezes se impõe, assim fica a natureza contente, observa-se a decência e os costumes não se sentem ultrajados. - Eis o que se chamam belos e bons sofismas, por esse caminho tudo justificaríamos; e que disse afinal que nós não possamos igualmente alegar em nosso favor? - Absolutamente nada, com preconceitos tão diferentes não devem ter os mesmos pavores, o vosso triunfo está na nossa derrota... quanto mais multiplicam as vossas conquistas, mais acrescentam a vossa glória, e não podem recusar-se aos sentimentos que fazemos nascer dentro de vós, a não ser por vício ou depravação. - Na verdade, creio que me vai converter. - Gostaria. - Que ganharia com isso, continuando no erro? - É um favor que o meu sexo me ficará a dever e como amo as mulheres, sinto-me feliz por trabalhar para elas. - Se o milagre acontecesse, os seus efeitos não seriam tão gerais como parece acreditar, eu só me converteria por uma única mulher quando muito a fim de... experimentar. - O princípio é honesto. - É que é bem certo haver um pouco de receio, sinto-o, em tomar um partido sem ter provado de tudo. - O quê, nunca viu uma mulher? - Nunca, e a Menina... acaso possuíra primícias tão seguras? - Oh, primícias, não... as mulheres que vemos são tão astutas e ciumentas que não nos deixam nada... mas nunca conheci um homem em toda a minha vida. - E fez uma jura? - Sim, não quero ver nem jamais conhecer senão um tão singular como eu. - Sinto-me desolado por não ter feito a mesma jura. - Não creio que seja possível ser mais impertinente. E dizendo estas palavras, a Menina de Villebranche levanta-se e diz a Franville que se pode retirar quando quiser. O nosso jovem apaixonado sempre de sangue-frio faz uma profunda reverência e apresta-se para sair. - Regressa ao baile - diz-lhe secamente a Menina de Villebranche fitando-o com um despeito misturado com o mais ardente amor. - Claro que sim, já lho disse, parece-me. - Não é assim capaz do sacrifício que por si fiz. - O quê, fez-me algum sacrifício? - Só voltei para casa para não ver mais nada após ter tido a infelicidade de o conhecer. - A infelicidade? - É o senhor que me força a servir desta expressão, só do senhor dependia que eu usasse uma bem diferente. - E como conciliaria isso com os seus gostos? - O que não abandonamos nós quando amamos! - De acordo, mas ser-lhe-ia impossível amar-me. - Isso sucederia se conservasse hábitos tão horríveis como os que em si descobri. - E se renunciasse a eles? - Eu imolaria imediatamente os meus sobre os altares do amor... Ah! pérfida criatura, como esta confissão custa à minha glória, e tu acabas de ma arrancar - disse Augustine em lágrimas, deixando-se cair numa cadeira. - Obtive da mais bela boca do universo a confissão mais lisonjeira que me seria possível ouvir - disse Franville precipitando-se aos joelhos de Augustine. - Ah, querido objecto do meu mais terno amor, reconheça o meu fingimento e digne-se não o punir, é a seus joelhos que imploro a graça e aí ficarei até ao meu perdão. - Vê junto de si, menina, o amoroso mais constante e mais apaixonado; julguei necessário este estratagema para vencer um coração cuja resistência conhecia. Consegui, bela Augustine, recusará ao amor sem vícios o que se permitiu deixar ouvir ao apaixonado culpado... culpado, eu... culpado do que acreditou... ah! acaso supunha que uma paixão impura pudesse existir na alma daquele que só por si se sentiu incendiado. - Traidor, enganaste-me... mas perdôo-te... todavia nada terás para me sacrificar, pérfido, e o meu orgulho será menos lisonjeado, está bem, não importa, por mim sacrifico-te tudo... Vai, renuncio com alegria por te agradar a erros a que a vaidade nos arrasta quase tanto como os nossos gostos. Sinto-o, a natureza vence, abafava-o com extravagâncias que agora detesto com toda a minha alma; não se resiste ao seu império, ela só nos criou para vós, ela só vos formou para nós; sigamos as suas leis, é pela própria voz do amor que ela mas inspira hoje, não me serão por isso menos sagradas. Eis a minha mão, senhor julgo-o homem de honra e em condições de me pretender. Se pude merecer perder um instante a sua estima, à força de cuidados e de ternura repararei talvez os meus erros, e forçá-lo-ei a reconhecer que os da imaginação nem sempre degradam uma alma bem nascida. Franville, todos os seus votos satisfeitos, inundando com as lágrimas da sua alegria as belas mãos que beijava, ergue-se e precipitando-se nos braços que se lhe abrem: - Oh dia mais afortunado da minha vida - exclama -, nada existe de comparável ao meu triunfo, reconduzo ao seio das virtudes o coração onde vou reinar para sempre. Franville beija milhares de vezes o divino objecto do seu amor e separa-se; dá a conhecer no dia seguinte a sua felicidade a todos os amigos; a Menina de Villebranche era um partido demasiado bom para que os seus pais lho recusassem, desposa-a na mesma semana. A ternura, a confiança, a discrição mais escrupulosa, a modéstia mais severa coroaram o seu himeneu, e ao tornar-se o mais feliz dos homens, teve a sabedoria suficiente para fazer da mais libertina das moças a mais prudente e a mais virtuosa das mulheres.


"Fingimento Feliz"

Fingimento Feliz
Marquês de Sade

O mundo vive cheio de mulheres imprudentes que imaginam, contanto que não cheguem às vias de fato com o amante, poder, sem ofenderem ao marido, condescender ao menos num comércio galante. Dessa maneira de ver resultam mais de uma vez conseqüências mais perigosas do que seriam as de uma queda completa. O que sucedeu à Marquesa de Guissac, dama de certa condição, de Nimes, no Languedoc, é prova segura da máxima que entendemos formular aqui. Louca, estouvada, alegre, cheia de espírito e gentileza, a Sra. de Guissac pensou que algumas cartas galantes trocadas entre ela e o barão de Aumelas não teriam nenhuma conseqüência, porque ficariam ignoradas para sempre, e, se por infelicidade viessem a ser descobertas, podendo ela demonstrar ao esposo sua inocência, de modo algum incorreria em desgraça.

Foi engano. O Sr. Guissac, ciumento em excesso, entra a suspeitar do comércio dos dois, interroga uma criada de quarto, apodera-se de uma carta na qual, embora nada encontrando que lhe possa legitimar os receios, acha mais que o bastante para alimentar-lhe as suspeitas. Neste cruel estado de incerteza, mune-se de uma pistola e de um copo de limonada, e penetra no quarto da esposa como um possesso.

- Estou sendo traído, senhora -, grita-lhe com furor. – Leia este bilhete. Ele me esclarece. Não há mais tempo para hesitação, deixou-lhe escolher a morte que deseja. A Marquesa defende-se, jurando ao esposo que ele está enganado. Será culpada de imprudência, mas não de nenhum outro crime.

- Não mais me enganarás, pérfida -, responde furioso o marido. – Não mais me enganarás. Apressa-te em escolher, senão esta arma há de privar-te imediatamente da luz do dia.

Aterrada, a pobre Marquesa decide-se pelo veneno, pega do copo e põe-se a esvaziá-lo.

- Pára! – interrompe-a o marido no instante em que já foi absorvida a metade do líquido. – Não perecerás sozinha. Odiado e traído por ti, que outro fim haveria eu de levar?
Ao concluir essas palavras, engole a outra metade do líquido.

- Senhor – exclama a Sra. Marquesa de Guissac -, no horrível estado a que acaba de nos reduzir, não me recuse um confessor, e que eu possa pela última vez abraçar meu pai e minha mãe.

Mandam-se buscar imediatamente as pessoas reclamadas por aquela desditosa mulher. Ela se atira ao seio daqueles a quem deve a vida e protesta de novo a sua inocência. Mas como censurar um marido que se julga enganado e que, ao infligir tão cruel castigo à esposa, se imola a si mesmo também? Só resta o desespero, e as lágrimas que correm abundantes dos olhos de ambos.

Nisso chega o confessor.
- Neste momento cruel da minha vida – diz a Marquesa -, desejo, para consolação de meus pais e honra de minha memória, fazer uma confissão pública.

E logo passa a acusar-se em voz alta de quanto lhe pesa na consciência desde que nasceu. O marido, atento, como não ouve pronunciar o nome do Barão, e certo de que não é num momento daqueles que a esposa ousaria recorrer ao fingimento, levanta-se no auge da alegria.

- Meus queridos pais – exclama abraçando o sogro e a sogra -, consolem-me, e que sua filha me perdoe o susto que lhe preguei; ela me deu bastante inquietação para que me fosse permitido retribuir-lha. No que acabamos de engolir nunca houve a menor dose de veneno. Ela que sossegue, assim como todos aqui, mas lembre-se de que uma esposa deveras honesta não só deve abster-se de agir mal, mas também não deixar pairar suspeitas acerca do seu procedimento.

A Marquesa tardou a refazer-se: julgara estar realmente envenenada a ponto de a força da própria imaginação lhe fazer experimentar todas as angústias de semelhante morte. Ergue-se trêmula, abraça-se ao marido. A alegria sucede à dor, e a jovem senhora, admoestada mais do que seria mister por aquela cena horrível, promete evitar, no futuro, até a aparência da mais leve incorreção.

Manteve a palavra, e viveu mais de trinta anos com o esposo, sem lhe dar motivo para a mais leve censura.

"A verdade"

A verdade

Marquês de Sade



Mas que quimera é esta, estéril e impotente,

Que divindade é esta imposta à néscia gente

Por sacerdotes vis, cambada de impostores?

Quererão eles contar-me entre os seus seguidores?

Ah, jamais, juro-o, e não faltarei ao já dito,

Jamais ídolo tão repelente e esquisito

Esse que do delírio é filho e da irrisão

A mim me causará a mais leve impressão.

Eu, glorioso e feliz com o meu epicurismo,

Só pretendo expirar no seio do ateísmo

E que o infame Deus feito para me alarmar

Seja ideado por mim tão só para o blasfemar.

Minha alma te detesta, oh sim, vã ilusão,

E protesto-o aqui, pra tua convicção.

Quisera que existir pudesses por um momento

Pra gozar o prazer de insultar-te a contento.

De facto ele quem é, esse fantasma odioso,

Esse poltrão de Deus, esse ser horroroso

Que nada oferece ou mostra ao espírito e ao olhar,

Que faz tremer o parvo e o que é sábio zombar,

Que aos sentidos não fala e nem o entende alguém,

Cujo culto cruel mais sangue sempre tem

Feito correr que a guerra ou que Têmis feroz

Em mil anos verter fizeram entre nós [1]?

Deífico tratante, em vão eu o analiso

Com filósofo olhar, em vão o estudo e viso:

Não vejo no motor de tais religiões

Mais que um impuro nó de mil contradições,

Que cede e se desfaz mal a gente o encara,

O insulta à vontade, o ultraja, o declara

Gerado pelo temor e da esperança nascido [2],

Que o meu espírito jamais teria concebido;

Em alternância ele é, nas mãos dos que o erigem,

Objecto de terror, de alegria ou vertigem,

Que o astuto impostor que no-lo vem pregar

Faz sobre a vida humana a seu prazer reinar,

Que ora ruim o pinta, ora em bondade infindo,

Ora nos massacrando, ora de pai servindo,

Sempre lhe atribuindo, a mando das paixões,

Costumes como os seus, suas opiniões;

Ou a mão que perdoa ou a que nos entala,

Com este Deus idiota o padre nos embala.

Com que direito aquele que a mentira adstringe

Pretende submeter-me ao erro que o atinge?

Careço eu do Deus que a sábia mente abjura

Pra a mim mesmo explicar as leis da mãe natura?

Nela tudo se move, e o seu seio criador

Age sem precisar da ajuda dum motor [3].

Este duplo embaraço algo me dá a ganhar?

A causa do universo esse Deus vem mostrar?

Se cria, também é criado, e assim fico,

Em recorrer a ele como antes interdito.

Sai do meu seio, sai, infernal impostura,

Desaparecendo cede às leis da mãe natura:

Ela só tudo fez, tu és o nada hiante

Do qual, ao nos criar, sua mão nos pôs distante.

Desvanece-te, pois, execrável quimera!

Pra longes climas foge, abandona esta terra

Onde mais não verás que corações fechados

Ao patoá intrujão dos teus apaniguados!

Quanto a mim, reconheço, é tal e é tamanho,

Tão justo, grande e forte este horror que te tenho,

Que com prazer, Deus vil, e com tranquilidade

Que digo eu? com enlevo e voluptuosidade,

Teu carrasco era eu se tua fraca existência

Oferecesse algum ponto à vingança, à violência,

E feliz o meu braço ia ao teu coração

Comprovar o rigor desta minha aversão.

[*] Mas é trabalho vão pretender-te atingir,

A tua essência escapa ao que a quer coagir.

Não podendo esmagar-te, ao menos, entre os vivos,

Queria eu derrubar os teus altares nocivos

E mostrar aos que um Deus cativa inda por ora

Que esse aborto tão vil que sua fraqueza adora

Não é feito pra pôr algum termo às paixões.

Ó ímpeto sagrado, altivas impressões,

Sempre, sempre por nós sede homenageados:

Vós só podeis auferir o culto dos mais sábios,

Vós só seu coração constantes deleitar,

Dados pela natureza, vós só nos alegrar!

Ceda-se ao seu poder e que a sua violência,

Subjugando nossa alma alheia à resistência,

Nossos prazeres transforme em leis impunemente:

Basta ao nosso desejo o que a sua voz expende [4].

Por mais que à agitação seu órgão nos arraste

Há que ceder-lhes sem remorso e sem desgaste;

E, não escrutando leis nem costumes lembrando,

Ardentemente ao erro irmo-nos entregando,

Que sempre por suas mãos no-lo ditou natura.

Respeitemos tão só o que ela nos murmura;

O que a nossa lei vã fustiga em toda a terra

É, pra o que ela planeia, o que mais preço encerra.

O que ao homem parece uma injustiça atroz

Efeito da sua mão corruptora é em nós,

E quando – hábito nosso – ir errar receamos,

Acolhê-la melhor é o que enfim lucramos [5].

Essas doces ações a que vós chamais crime

Esses excessos que só o parvo ilegitima

São os desvios que mais lhe agradam ao olhar

Vícios, inclinações que a fazem deleitar;

O que ela grava em nós não é senão sublime;

Aconselhando o horror, oferece quem vitima.

É feri-la então sem medo e sem temor talvez

De ter, em lhe cedendo, obrado malvadez.

Vejamos como o raio em suas mãos fatais

Fulmina ao acaso e como os filhos e os pais,

Os templos, os bordéis, os crentes, os bandidos,

Tudo à natura apraz, carente de delitos.

Servimo-la nós também ao cometer o crime:

Mais nossa mão o espalha e mais aquela o estima [6].

Usemos do seu grande império sobre nós,

Entregando-nos sempre ao prazer mais atroz [7]:

Defesas nunca são suas leis homicidas

E a violação, o incesto, o roubo, os parricídios,

Os gostos de Sodoma e o que Safo aprova,

O que ao homem faz mal ou o que o leva à cova

Tudo por certo é meio de lhe agradar.

Por terra os deuses pôr, o seu raio roubar

E destruir com ele, o dardo faiscante,

Tudo o que nos despraz num mundo horripilante.

Nada se poupe então: que as suas malvadezas

Sirvam de exemplo em tudo às nossas más proezas.

Sagrado, nada há: tudo neste universo

Deve ao jugo vergar do nosso vivo acesso [8].

Quanto mais aumentar, variar a perfídia,

Melhor a sentirá nossa alma decidida:

Dobrando, encorajando as nossas tentativas,

Leva-nos passo a passo às ações mais nocivas.

Os belos anos vão-se, ela chama por nós;

Dos deuses escarnecendo, ouçamos sua voz:

Pra nos recompensar, seu crisol espera já;

O que o poder tomou, necessidade dá.

Tudo ali se restaura e reproduz também.

Do grande e do pequeno a puta será mãe,

E todos vê iguais seu olhar amoroso,

O monstro e o celerado, o bom e o virtuoso.




(DE SADE - A Verdade e outros textos, p. 15-23)


NB: constituem o livro A Verdade e outros textos, além do poema transcrito e um prólogo ao mesmo, 6 outros textos: Pensamento (traduzido, tal como os anteriores, por Luiza Neto Jorge), Diálogo entre um Padre e um Moribundo, Petição da Secção de Piques aos Representantes do Povo Francês, Fantasmas, Homenagem por Maurice Heine -- todos traduzidos por Manuel João Gomes, que escreve também Nem Deus nem Natureza.




NOTA D'O CANTO DA FILOSOFIA
Reproduz-se, a seguir, um desenho original de Luis Manuel Gaspar 1989), concretização do projecto de frontispício colocado à margem da página 4 do manuscrito de "A Verdade", nestes termos: "Entregando-nos sempre ao prazer mais atroz. Ficará este verso sob a estampa, a qual representa um belo jovem nu enrabando uma rapariga igualmente nua. Com uma das mãos agarra-a pelos cabelos e vira-a para si, com a outra enterra-lhe um punhal no seio. Sob os seus pés estão as três pessoas da Santíssima Trindade e por baixo as frioleiras da religião. Em cima, a Natureza, numa glória, coroa-o de flores."



NOTAS DE SADE
[1] Avaliam-se em mais de cinquenta milhões de indivíduos as perdas ocasionadas pelas guerras ou massacres de religião. Acaso valerá uma só de entre elas o sangue de uma ave? E não deverá a filosofia deitar mão a todas as armas para exterminar um Deus em prol do qual se imolam tantos seres que valem mais do que ele, pois não há seguramente nenhuma ideia mais estúpida, mais perigosa, mais extravagante, nada mais detestável do que um Deus?



[2] A ideia de um Deus só adveio aos homens quando eles temeram, ou tiveram esperança. A isto apenas devemos atribuir a quase unanimidade dos homens sobre tal quimera. Universalmente infeliz, o homem teve, em todos os lugares e em todos os tempos, motivos de esperança e de temor, e em toda a parte invocou a causa que o atormentava, como em toda a parte esperou pelo fim dos seus males. Demasiado ignorante ou demasiado crédulo para saber que a desdita inevitavelmente anexada à sua existência outra causa não tinha do que a própria natureza dessa existência, ao invocar o ser a quem atribuía essa causa criou quimeras a que renunciou, logo que o estudo e a experiência lhe fizeram sentir a sua inutilidade. O temor fez os deuses e a esperança manteve-os.



[3] O mais ligeiro estudo da natureza convence-nos da eternidade do movimento no seu seio e esse exame atento das suas leis mostra-nos que nada nela perece, que ela continuamente se regenera sob o efeito daquilo que nós julgamos que a ofende ou que parece destruir as suas obras. Ora, se as destruições lhe são necessárias, a morte torna-se uma palavra vazia de sentido: o que há são transmutações e não extinção. Ora a perpetuidade do movimento que existe nela deita abaixo toda a ideia de um motor.


[*] À margem, uma variante que não foi riscada:
Masturbar-me-ia sobre a tua divindade, Enrabar-te-ia se a tua fraca existência Oferecesse um cu à minha incontinência; Meu braço o coração te viria a arrancar Pra com o meu fundo horror melhor te penetrar.

(Nota de G. Lely)



[4] Entreguemo-nos indistintamente a tudo quanto as paixões nos inspiram e seremos sempre felizes. Desprezemos a opinião dos homens: ela é apenas o fruto dos seus preconceitos. E quanto à nossa consciência, nunca receemos a sua voz quando conseguimos entorpecê-la: o hábito facilmente a reduzirá ao silêncio e não tardará a metamorfosear em prazer as mais desagradáveis recordações. A consciência não é o órgão da natureza; apenas é, não nos ludibriemos, o órgão dos preconceitos; vençamo-los e a consciência ficará às nossas ordens. Interroguemos a consciência do selvagem, perguntemos-lhe se ela lhe censura o que quer que seja. Quando ele mata o seu semelhante e o devora, a natureza parece falar nele; a consciência está muda. Ele concebe o que os parvos chamam crime e executa-o; tudo se cala, tudo está em sossego, ele serviu a natureza mediante a ação que mais agrada a essa natureza sanguinária cujo crime mantém a energia e que só de crimes se alimenta.



[5] E como poderíamos nós ser culpados quando mais não fazemos do que obedecer às impressões da natureza? Os homens e as leis que são obra dos homens podem considerar-nos como tal, mas jamais a natureza. Só se lhe resistíssemos é que poderíamos a seus olhos ser culpados. É esse o único crime possível, o único de que devemos abster-nos.



[6] Demonstrado como está que o crime lhe agrada, o homem que melhor a servirá será necessariamente aquele que der maior extensão ou gravidade aos seus crimes, devendo notar-se que a extensão lhe agrada ainda mais do que a gravidade, pois, apesar da diferença que os homens estabelecem, o assassínio e o parricídio são exatamente a mesma coisa a seus olhos. Mas o que tiver provocado mais desordens no universo agradar-lhe-á muito mais do que aquele que se tiver detido ao primeiro passo. Que esta verdade ponha à vontade os que dão rédea solta às suas paixões e que eles se convençam de que a melhor maneira de servir a natureza é multiplicar as suas perfídias.



[7] Estes gostos só são verdadeiramente úteis e prezados pela natureza enquanto propagarem, enquanto espalharem aquilo a que os homens chamam a desordem. Quanto mais eles cortam, sapam, deterioram, destroem, mais preciosos lhe são. A eterna necessidade que ela tem de destruição serve de prova a esta asserção. Tratemos de destruir, pois, ou de impedir de nascer, se queremos ser úteis aos seus planos. Assim, o masturbador, o assassino, o infanticida, o incendiário, o sodomita, são homens conformes com os desejos dela, aqueles que, por conseguinte, devemos imitar.



[8] Impormo-nos freios ou barreiras na via do crime seria visivelmente ultrapassar as leis da natureza que nos entrega indistintamente todos os seres de que nos rodeia, sem jamais abrir excepções, pois desconhece os nossos laços e cadeias, de modo que as pretensas destruições são nulas a seus olhos, que o irmão que dorme com a irmã não faz pior do que aquele que dorme com a amante e que o pai que imola o filho não ultraja mais a natureza do que o particular que assassina um desconhecido por esses caminhos. A seus olhos não há qualquer diferença dessas; o que ela quer é o crime; não interessa a mão que o comete ou o seio em que é cometido.


"Há lugar para os dois"


Há lugar para os dois
Marquês de Sade

Uma formosíssima burguesa da rua Saint-Honoré, de uns vinte anos de idade, roliça, gordita, de carnes frescas e apetecíveis, de formas bem torneadas ainda que abundantes e que unia a tantos atrativos a presença de ânimo, vitalidade e a mais intensa aficção a todos os prazeres que lhe vetavam as rigorosas leis do himeneu, havia decidido, há um ano aproximadamente, proporcionar duas ajudas a seu marido que, velho e feio, não só lhe causava asco mas que, para cúmulo, só raramente cumpria com seus deveras que, talvez um pouco melhor desempenhados poderiam acalmar a exigente Dolmène, que assim se chamava nossa burguesa. Nada melhor organizado que os encontros com seus dois amantes: Des-Roues, jovem militar, lhe tocava de quatro a cinco da tarde, e das cinco e meia às sete era o turno de Dolbreuse, jovem comerciante com a mais formosa figura que se podia contemplar. Resultava impossível fixar outras horas, eram as únicas em que a senhora Dolmène estava tranqüila: pela manhã tinha que estar na tenda, à tarde às vezes tinha que ir ali igualmente ou bem seu marido regressava e tinha de falar de seus negócios. Além disso, a senhora Dolmène havia confessado a uma amiga que ela preferia que os momentos de prazer se sucedessem assim, seguidos: o fogo da imaginação não se apagava desta forma - dizia - nada tão agradável como passar de um prazer ao outro, não cabia o fastio de voltar ao princípio, pois a senhora Dolmène era uma criatura encantadora que calculava ao máximo todas as sensações do amor, poucas mulheres analisavam como ela e graças a seu talento havia compreendido que os dois amantes valiam muito mais que um só; enquanto a reputação dava no mesmo, a gente podia se enganar, podia tratar sempre do mesmo que ia e vinha várias vezes ao dia, e no que toca ao prazer, que diferença!

A senhora Dolmène tinha um medo terrível da gravidez e convencida de que seu marido nunca cometeria com ela a loucura de estragar-lhe o corpo, havia calculado que com dois amantes havia menos perigo do que temia de um só, pois - dizia ela como boa anatomista - os dois frutos se destroem entre si.

Certo dia, a ordem dos encontros se alterou e nossos dois amantes, que nunca se tinham visto, se fizeram amigos de uma forma bem divertida, como vamos ver. Des-Roues era o primeiro, mas havia chegado demasiado tarde e, como se fosse coisa do diabo, Dolbreuse, que era o segundo, chegou um pouco antes.

O leitor inteligente se dará conta em seguida que a combinação desses dois pequenos erros devia causar um encontro inevitável, como de fato aconteceu. Mas mostremos como ocorreu e, se possível, aprendamos dele com todo o recato e comedimento que exige semelhante matéria, por si só muito licenciosa.

Por causa de um capricho bastante singular – e os homens são propensos a isso – nosso jovem militar, cansado do papel de amante, quis interpretar o de amada; em lugar de ficar amorosamente abraçado pelos braços de sua divindade, preferiu abraçá-la de outro modo, em uma palavra, o que devia ficar embaixo, ele pôs em cima e nesta troca de papéis quem se inclinava sobre o altar em que habitualmente tinha lugar o sacrifício era a senhora Dolmène, que nua como a Vênus Calipigia e estendida como estava sobre seu amante, estava em linha reta com a porta da habitação em que se celebrava o mistério, isso que os gregos adoravam com tanta devoção na estátua que acabamos de citar, essa região tão formosa, em uma palavra que, sem que tenhamos que ir demasiado longe para dar um exemplo, conta em Paris com tantos adoradores. Tal era sua postura quando Dolbreuse, que tinha o costume de entrar sem mais preâmbulos, abre a porta cantarolando e dá de frente com um panorama que, segundo se diz, uma mulher verdadeiramente honesta não deve nunca mostrar. O que havia cumulado de júbilo a tanta gente, fez retroceder Dolbreuse.
- Que vejo! Exclamou. Traidora... ! É isso, pois, o que me reservas?

A senhora Dolmène, que nesse preciso instante se encontrava numa dessas crises em que a mulher atua melhor do que raciocina, apressa-se em contestar semelhante pretensão:
- Que diabos te passa?- pergunta ao segundo Adônis sem deixar de entregar-se ao primeiro. Não vejo porque há de decepcionar-te; não nos moleste, amigo meu, e acomoda-te aqui, que podes; como bem podes ver, há lugar para os dois.

Dolbreuse, que não pôde conter seu riso ante o sangue frio de sua amante, compreendeu que o melhor era seguir seu conselho e não se fez de rogado e parece que os três ganharam com ele.

"Os sofrimentos da virtude"

1. Justine no convento de Santa Maria dos Bosques


Não me abandonaram, em quaisquer circunstâncias de minha vida, os sentimentos de religiosidade. Desprezando os vãos sofismas dos espíritos fortes, acreditando que tudo isto vinha antes da libertinagem do que de uma firme convicção, opus-lhes meu coração e minha consciência e nestes encontrava tudo o que era preciso responder. Todas as vezes em que era forçada, para infelicidade minha, a negligenciar meus deveres de piedade, reparava o erro na primeira oportunidade que me surgisse.


Acabara de partir de Auxerre, a 7 de junho - não me esquecerei nunca desta data - tinha andado umas duas léguas, o calor aumentava cada vez mais, e resolvi subir uma elevação coberta por um pequeno bosque, distanciado um pouco para a esquerda, para ali me refrescar e cochilar um par de horas por menor preço que num albergue, e mais seguro que no caminho. Subi e abriguei-me à sombra de um carvalho onde adormeci após um repasto frugal composto de pão e vinho. Gozei de mais de duas horas de tranqüilidade. Ao despertar, pus-me a contemplar a paisagem que se estendia diante dos meus olhos, sempre à esquerda do caminho. Acreditei ver a mais de três léguas, distante de mim, no meio do uma floresta que se estendia a perder de vista, um pequeno campanário pairar modestamente no ar.


- Doce solidão - disse a mim mesma - quanto me Inveja a tua existência! Aquilo deve ser o asilo de alguns religiosos ou de alguns santos solitários, que só se ocupam com os seus deveres, inteiramente consagrados à religião, longe desta sociedade perniciosa em que o crime sempre triunfa sua luta incessante contra a inocência. Estou certa de que todas as virtudes moram ali.
Perdia-me nestas reflexões quando uma jovem da minha idade, que vigiava uns carneiros na planície, surgiu-me diante dos olhos. Indaguei sobre que habitação seria aquela. Respondeu-me ser um convento de recoletos, onde viviam quatro frades solitários, os quais em nada se achava igual em religião, continência e sobriedade.


- Ali - disse-me a jovem - se vai uma vez por ano, em peregrinação a uma virgem milagrosa, de quem as pessoas piedosas conseguem o que pedem.


Levada pelo desejo de ir até lá implorar aos pés da santa mãe de Deus por socorro, indaguei da jovem se queria me acompanhar. Disse-me não o poder, pois sua mãe a esperava em casa. Mas que não era difícil alcançar o convento pelo caminho que levava até lá. Indicou-mo, acrescentando ser o guardião o homem mais santo e respeitável que havia naqueles arredores e que ele iria me receber às mil maravilhas, e oferecer-me-ia ajuda, caso eu necessitasse.


- O reverendo se chama Rafael - acrescentou a Jovem - é Italiano de nascimento, mas viveu quase toda a sua vida aqui na França, ama esta solidão e já recusou excelentes benefícios que o papa, seu parente, lhe ofereceu. É um homem de família nobre, servidor, bom, cheio de zelo e piedade, de quase quarenta anos de idade e a quem neste lugar todos olham como a um santo.


A narrativa da pastora tocou-me mais ainda o coração, e não mais me pude conter no desejo de ir em peregrinação ao convento, para então expiar por atos piedosos a negligência em que até então vivera. Dei um pouco do que tinha à jovem pastora e eis-me a caminho de Santa Maria dos Bosques, que era o nome do convento para onde me dirigia. Quando alcancei a planície não mais avistei o campanário, só podendo me guiar pela floresta. Esquecera-me de perguntar à jovem quantas léguas distava o convento do lugar em que me encontrava e logo percebi que a distância era bem maior que a estimativa que fizera. Mas nada me desencorajou e assim cheguei à borda da floresta; e vendo que ainda contava com uma boa parte do dia, resolvi nela penetrar, quase segura de chegar ao convento ao cair da tarde... Nem um rastro de ser humano apareceu diante dos meus olhos, nem uma casa sequer e não tinha eu por caminho mais que uma trilha pouco batida pelos pés humanos, e que seguia quase ao acaso. Caminhara cinco léguas desde a colina onde estivera e de onde pensara chegar ao meu destino, vencendo pouco mais de três. Nada aparecia diante dos meus olhos, quando, estando o Sol prestes a se por, ouvi, a menos de uma légua, o som de um sino. Segui em direção ao toque; apressei-me, a trilha se alargava um pouco... e ao cabo de uma hora de caminho, desde que ouvira o toque do sino, percebi algumas sebes e logo depois o convento. Nada mais agreste que estes páramos. Nenhuma habitação nas vizinhanças, pois a mais próxima distava pelo menos três léguas da floresta. O convento assentava no fundo do vale, sendo necessário descer para alcançá-lo, dai o motivo de ter perdido o campanário de vista ao deixar a colina. A cabana de um irmão jardineiro era pegada às paredes do abrigo interior e era para ali que se devia Ir antes de nele penetrar. Indaguei ao santo eremita se era permitido falar ao padre-guardião... perguntou-me o que eu desejava... disse-lhe ser um dever religioso... que uma promessa me trouxera àquele retiro piedoso e estaria recompensada de todas as tribulações por que passara para ali chegar, se me fosse permitido cair de joelhos aos pés da Virgem e do santo diretor em cuja casa se encontra a imagem tão milagrosa. O irmão, convidando-me para descansar, penetrou no convento e como fazia noite e os padres estavam - disse - jantando, ele demoraria um Pouco a retornar. Afinal, apareceu um religioso.


- Eis o padre Clemente, senhorita - disse o irmão. É o ecônomo da casa e vem saber se pelo que deseja vale a pena interromper o padre guardião.


O padre Clemente era um homem de quarenta e cinco anos, fortíssimo, porte gigantesco, olhar selvagem e sombrio, voz dura e rouca, que de inicio me fez mais medo que consolo... Um tremor involuntário tomou conta de mim e, indefesa, recordei todas as infelicidades que minha memória guardava.


- Que desejas? - foi-me dizendo este monge de aspecto rígido. - Por acaso isto são horas de vir a uma Igreja? Tens a aparência de uma aventureira.


- Santo homem - disse eu prostrando-me - acreditei que qualquer hora era sempre hora de vir à casa de Deus. Venho de longe, cheia de fervor e devoção, e peço, se possível, para confessar, e, quando tiverdes conhecido tudo o que guarda a minha consciência, então vereis se sou ou não digna de prostrar-me aos pés da Imagem milagrosa, que guardais em vossa santa casa.


- Não é hora de se confessar - disse o monge amainando a voz. - Onde vais passar a noite? Não temos lugar para te abrigar. Seria melhor vires pela manhã.


Nesta altura lhe disse todos os motivos que me impediam de assim fazer e sem nada me dizer foi dar conta de tudo ao guardião. Alguns minutos depois estava aberta a porta da igreja, e o próprio padre-guardião se dirigia para mim na cabana do jardineiro e me convidava a entrar no convento com ele. O padre Rafael, do qual posso dar uma idéia, era um homem de idade, como me tinham dito, mas a quem não se dava mais de quarenta anos. Era delgado, bastante alto, com um ar doce e espiritual, falando corretamente o francês com leve sotaque italiano, maneiroso e tão amável por fora quanto sombrio e selvagem por dentro, quanto ao que terei ocasião de convencer-vos.


- Minha filha - disse-me com certa graça - embora a hora não seja conveniente e não tenhamos o costume de receber ninguém a estas horas, eu vou ouvir a tua confissão e providenciaremos os meios de agasalhar-te esta noite até que amanheça, quando poderás orar diante da imagem santa que possuímos em nossa igreja.


Dito isto, o monge acendeu algumas lâmpadas ao redor do confessionário, e convidou-me para ali tomar o meu lugar e, mandando o irmão que o acompanhava retirar-se, fechou todas as portas e exortou-me a confiar nele com a segurança. Inteiramente reposta, diante de um homem, na aparência tão bondoso, dos temores que me causara o padre Clemente, após humilhar-me aos pés de meu diretor, abri-lhe toda a minha alma, e conforme a minha bondade e confiança, que trago de ordinário comigo, contei-lhe tudo o que a mim tocara. Confessei-lhe os meus erros e confiei-lhe todas as minhas infelicidades, nada ocultando, nem mesmo a marca oprobriosa que o execrável Rodin me fizera.


O padre Rafael escutou-me com a maior atenção, e fez-me repetir vários detalhes, guardando sempre um ar de piedade e de interesse... principalmente no que se referia aos seguintes pontos:
1. Se era verdade que eu era órfã e de Paris.
2. Se era certo não ter eu nem parentes, nem amigos, nem proteção, nem ninguém a quem escrever.
3. Se eu só tinha confiado à pastora meu desígnio de vir ao convento e se não tinha marcado um encontro para quando voltasse.
4. Se era certo que eu era virgem e só tivesse vinte e dois anos.
5. Se eu estava certa de que ninguém me seguira o que quem quer que fosse me tinha visto entrar no convento.


Esclarecidos estes pontos, respondeu-me com ar de ingenuidade:
- Está bem - disse, levantando-se e tomando-me pela mão - vem, minha filha. Já é muito tarde para se ir orar à virgem esta noite, desculpar-te-ei, amanhã pela manhã, aos pés da santa. Agora vamos cuidar de jantar e deitar.


Assim dizendo, me levou à sacristia.
- E aonde - indaguei-lhe, tomada de uma incontrolável inquietação. - Onde, meu padre. No interior de vossa casa?


- Onde mais então, linda peregrina - respondeu-me o monge, abrindo-me uma das portas do claustro que dava para a sacristia, onde me introduziu... - O quê? Então temes passar a noite com quatro religiosos? Oh! verás, meu anjo, que não somos tão beatos quanto aparentamos e que sabemos nos divertir com uma linda jovem.


Tais palavras transpassaram-me: ó justo Céu, disse a mim mesma, serei ainda vitima de meus bons sentimentos e do desejo que trago comigo de me aproximar do que de mais respeitável tem a religião? E ides, pois, punir-mo como se tudo isto fosse um crime? No entanto, avançávamos na escuridão. Ao término de um dos lados do claustro havia uma escada. O monge me fez passar para diante dele, e percebeu que havia um pouco de resistência de minha parte.


- Tratante - disse com cólera, mudando o seu ar insinuante por um de maior insolência - imaginais que há tempo para algum recuo? Ah! com os seiscentos mil diabos, agora tu vais saber se não era preferível cair num couro de ladrões a cair entre quatro recoletos.


Fui tomada de tal pavor que não tive tempo para alarmar-me com tais palavras. Apenas me puseram de sobreaviso sobre o que me esperava. A porta se abriu, e vi em redor de uma mesa três monges e três moças, todos os seis na situação mais indecente que se possa imaginar. Duas destas jovens estavam completamente nuas, a terceira estava se despindo ainda, e os monges estavam quase nus...


- Meus amigos - disse Rafael entrando - faltava uma, ei-la aqui. Permiti que vos apresente uma coisa extraordinária: eis uma Lucrécia que traz nas costas a marca das mulheres de má vida e eis que - continuou, fazendo um gesto dos mais indecentes e significativos... - e eis, meus amigos, a prova certa de uma virgindade reconhecida.


Explosões de risos se fizeram ouvir por toda a sala, em resposta a tão estranha recepção, e Clemente, aquele a quem eu vira primeiro, gritou logo, já meio ébrio, que era necessário verificar ali mesmo se eu era virgem ou não. A esta altura dos acontecimentos sou obrigada a interromper a narrativa para pintar que tipo de gente era aquela. Deixar-vos-ei o menos possível em suspense, no que se refere à minha situação.


Conheceis suficientemente Rafael e Clemente. Limitar-me-ei a pintar os outros dois. Antonino, o terceiro dos padres do convento, era um homem de pequena estatura, de quarenta anos de idade, seco, franzino, de temperamento fogoso, de aspecto de sátiro cabeludo como um urso, libertino desenfreado e de uma teimosia e maldade sem igual. O padre Jerônimo, deão da casa, era um velho libertino de sessenta anos, tão duro e bruto quanto Clemente, ainda mais ébrio do que ele e que, já não podendo por meios comuns satisfazer seus lúbricos desejos, era levado, se queria gozar a volúpia da lubricidade, a recorrer a outros meios muito mais depravados e indignos.


Florette era a mais jovem das mulheres, natural de Dijon, de cerca de quatorze anos de idade, filha de um rico burguês dessa cidade e trazida pelos companheiros de Rafael, que sendo rico e de grande crédito na sua ordem, não costumava negligenciar nada que servisse à satisfação de seus desejos. Era morena, de lindos olhos e de trato picante. Cornélia tinha cerca de dezesseis anos, era loura, de boa presença, belos cabelos, pele macia e de porte mais belo que se possa imaginar. Era de Auxerre, filha de um comerciante de vinho e que fora diretamente seduzida por Rafael, que a conduziu secretamente à sua armadilha. Omphale era uma mulher de mais de trinta anos, cândida e agradável, de belas formas, cabelos longos, lindo pescoço e possuidora dos mais ternos olhos que eu já vira. Era filha de um abastado vinhateiro de Joigny, roubada à sua família aos dezesseis anos de idade pelas seduções de Jerônimo, às vésperas de seu casamento com um homem que iria fazer, certamente, sua felicidade. Tal a sociedade em que eu iria conviver, tal a cloaca de impureza e imundície onde de maneira vã pensei encontrar virtudes respeitáveis.
Já fiz saber que estando em meio tão miserável, só me cabia imitar a submissão de minhas companheiras.


- Deves saber - disse Rafael - que de nada adianta resistir em lugar tão inóspito para onde te conduziu tua má estrela. Confessaste-me ter padecido, se é verdade o que disseste, muitas infelicidades, mas a pior delas para uma jovem virtuosa ainda não consta na tua lista de infortúnios. Por acaso é natural ser virgem na tua Idade? Não é pois um milagre tua virgindade ter durado tanto tempo... ? Eis aí as tuas companheiras, que, como tu, se recusavam a nos servir, e como rapidamente reconheceste, terminaram por se submeter, para não serem maltratadas. Na situação em que te encontras, Sofia, como pensas em te defender? Pensa no abandono em que te encontras; e como tu mesma disseste, não tens nem pais nem amigos. Pensa no deserto em que estás, sem ajuda, ignorada de todo mundo, nas mãos de quatro libertinos que nada farão para te poupar... a quem vais recorrer, por acaso ao deus a quem acabas de implorar com tanto zelo, e que lucro virá para ti a não ser o de empurrar-te com mais força para a armadilha? Saibas que não existe humano ou divino que te possa arrancar de nossas mãos e não há na ordem das coisas possíveis nem milagres nem nenhum meio que te possa deixar conservar por mais tempo a tua virgindade, que te possa impedir de ser, por todos os modos imagináveis, a presa do excesso de lubricidade em que nós quatro vamos mergulhar contigo. Desnuda-te, Sofia, e que a tua resignação provoque bondade de nossa parte, que, imediatamente caso não te submetas, será submetida pelos mais duros e ignominiosos tratamentos, tratamentos que nos irritarão mais ainda, sem ao menos te colocar ao abrigo de nossa intemperança e de nossas brutalidades.


Logo conheci que tal conversa não me oferecia nenhum recurso, e podia então eu empregar o que meu coração indicava e que a natureza ainda me reservava? Joguei-me aos pés de Rafael, supliquei-lhe não abusar de mim, inundei de lágrimas os seus joelhos e chorando utilizei o que a minha alma oferecia de mais patético. Ignorava que as lágrimas eram um motivo a mais de atração aos olhos do crime e da devassidão, que tudo o que eu fazia para comover estes monstros somente os inflama-va... Rafael se levanta furiosamente.


Agarra esta marota, Antonino - disse franzindo a testa - e poem-na nua imediatamente diante de nós, agarra-a, pois entre homens como nós não pode haver compaixão.
Antonino agarrou-me com um braço seco e nervoso, e misturando seus propósitos e juramentos terríveis, em dois minutos tirou-me tôdas as roupas, deixando-me nua diante dos olhos da assistência.


Eis aí que bela criatura - disse Jerônimo. - Que os raios destruam este convento se em trinta anos vi coisa mais linda.
Um momento - gritou o guardião - vamos por um pouco de ordem no que vamos fazer. Vocês conhecem, meus amigos, nossas fórmulas de recepcionar: que ela passe por todas elas, sem exceção de nenhuma, e que, durante este tempo, as três mulheres fiquem ao redor de nós para prever as necessidades de excitar-nos.


Imediatamente se formou um círculo, colocaram-me no centro e aí durante mais de duas horas examinaram-me, observaram-me, apalparam-me, e de quando em vez ouvia de cada um destes libertinos ou elogios ou criticas. Permiti-me, senhora disse a bela prisioneira corando bastante neste ponto ocultar uma parte dos detalhes obscenos que ocorreram nesta primeira cerimônia. Que a vossa imaginação possa representar tudo o que o deboche pode, em casos como este, ditar aos libertinos, e que ela imagine o que de minhas companheiras para mim podiam comparar, censurar, confrontar, discorrer, e, mesmo assim, a vossa imaginação não terá mais que uma ligeira idéia em comparação com os horrores de que seria vítima.


- Vamos - disse Rafael cujos desejos foram a tal ponto excitados que não mais podiam ser contidos - já está na hora de imolar a vítima. Que cada um de nós se prepare para fazê-la suportar seus prazeres preferidos.


O infeliz me colocou num sofá na posição própria à prática do ato execrável mandando que Antonino e Clemente me segurassem... Rafael, italiano, monge e depravado, não vacilou em gozar o prazer de um modo ultrajoso, deixando-me ainda virgem. Oh! Que completo desvario! Pois estes homens abomináveis se vangloriavam de esquecer a natureza na escolha de seus prazeres indignos. Clemente avançou para mim, excitado pelo espetáculo que seu superior lhe oferecera, e mais ainda que observara. Declarou-me não ser mais perigoso do que o seu guardião, e que no lugar onde ia prestar sua homenagem deixaria minha virtude sem perigo. Fez-me ficar de quatro pés e agarrando-se a mim nesta posição satisfez sua vontade em um lugar que, durante o sacrifício, me foi impossível reclamar a sua irregularidade.


Seguiu-se Jerônimo cujo templo era o mesmo que o que Rafael usara mas sem chegar ao santuário. Contente de observar o adro daquele templo, emocionado pelos episódios primitivos cuja obscenidade não se pode pintar, ele satisfez seus desejos pelos meios bárbaros de que quase fui vítima em casa de Dubourg e nas mãos de Bressac.


- Eis aí as felizes preparações - disse Antonino agarrando-me. - Vem franguinha, vem que vou te vingar da irregularidade de meus confrades, e colher as primícias antes que me abandone a intemperança...


Mas que detalhes ... Deus Todo-Poderoso... . é-me impossível vos pintar. Diga-se apenas que este celerado, o mais libertino dos quatro, embora parecesse o menos distanciado do que manda a natureza, não consentisse, em dela se aproximando, por um pouco mais de conformidade em seu culto, embora a sua menor aparência de depravação me ultrajasse mais ainda... Ora, se algumas vezes a minha imaginação pairou sobre este tipo de prazer, eu o acreditava tão casto como o deus que o inspirou, dando, de modo natural, para que servisse de consolação aos homens, quando nascidos do amor e do carinho. Estava eu bem longe de crer que o homem, a exemplo das bestas-feras não pudesse gozar sem que fizesse tremer suas companheiras. Provei-o e com tal grau de violência que as dores do rompimento natural de minha virgindade foram menores que as que eu poderia suportar neste perigoso ataque. Mas no momento mais agudo do rompimento de minha virgindade, Antonino começou a dar gritos tão furiosos, a fazer incursões verdadeiramente assassinas sobre todas as partes do meu corpo, a dar mordidas semelhantes às carícias sanguinolentas dos tigres, que, num dado instante, acreditei ser presa de algum animal selvagem que só se comprazia em me devorar. Acabados estes horrores, caí no altar onde fui imolada, quase inconsciente e sem poder mexer-me.


Rafael ordenou que as outras mulheres cuidassem de mim e me fizessem comer, quando então um acesso de intensa tristeza acometeu minha alma neste momento tão cruel. Não me consolei com a horrível idéia de ter perdido afinal a minha tão querida virgindade, pela qual eu sacrificaria cem vezes minha vida, nem em ser assim desonrada por aqueles de quem esperava as melhores ajudas e consolação moral. Chorei copiosamente, meus gritos estrondaram na sala, rolei por terra, arranquei os cabelos, supliquei aos meus carrascos que me tirassem a vida. Enquanto isto, os celerados, de coração frio a tais cenas, se deleitavam em novos prazeres com minhas companheiras e nem ligavam em acalmar minha dor ou consolar-me. Importunados por meus gritos, decidiram mandar-me repousar em um local onde não pudessem ouví-los... Omphale já ia me levando, quando o pérfido Rafael, me olhando com lubricidade apesar do meu estado, disse que não consentiria que me levassem sem que ele uma outra vez me possuísse... Do projeto à prática foi um salto... Mas tendo seus desejos necessidade de um maior grau de excitação, só se satisfez quando usou os cruéis modos de Jerônimo... Que excesso de libertinagem, meu Deus! Poderiam esses debochados ser assim tão ferozes para escolher o instante de uma crise de desespero moral tão violenta que eu suportava para submeter-me a um exercício tão bárbaro?


- Oh! por Deus! - disse Antonino, por sua vez me agarrando - nada melhor de se seguir que o exemplo de um superior e nada mais picante que a repetição: a dor dispõe ao prazer, pois estou convencido de que a bela jovem vai me tornar o mais feliz dos homens.


Apesar de minha repugnância, apesar dos meus gritos e das minhas súplicas, vim a ser, pela segunda vez, o desditoso recipiente dos insolentes desejos dêste miserável... Por fim, deixaram-me ir.


- Se não tivesse eu tomado a dianteira quando esta bela princesa chegou - disse Clemente - e ela daqui não sairia, por Deus!, sem satisfazer, pela segunda vez, as minhas paixões. Mas ela nada perde em esperar.


- A ela prometo a mesma coisa - disse Jerônimo, fazendo-me sentir o vigor de seu braço no momento em que eu passava por ele. - Mas por esta noite é bastante, vamos todos dormir.


Sendo Rafael da mesma opinião, puseram fim àquelas orgias. Ele retém consigo Florette, que sem dúvida ia com ele passar a noite. O restante do grupo se dispersou. Eu fiquei sob os cuidados de Omphale. Esta sultana de mais idade que as demais parecia encarregada de cuidar das outras. Levou-me, pois, ao nosso quarto em comum, uma espécie de torre quadrada, em cada ângulo havendo um leito. Um dos monges, de ordinário, seguia as jovens quando estas se retiravam, e fechava a porta de dois ou mais ferrolhos. Foi Clemente quem cuidou disto. Estando ali, era impossível escapar por onde quer que fosse, só havendo neste quarto um quartinho reservado à toalete, de janela de tal modo gradeada como as do lugar onde dormíamos. Além disso, havia uma espécie de móvel, uma cadeira e uma mesa junto ao leito, resguardado por uma imunda cortina de tela, alguns cofres de madeira, cadeiras furadas apropriadas para retrete, bidês e uma mesa comum de toalete. Tudo isto só percebi no outro dia. Logo que ali cheguei, só de minhas dores pude cuidar. Ó céus, disse para mim mesma, está escrito que nenhum ato de virtude emanará de meu coração sem a contrapartida de duras penas! Que mal fiz, ó Deus Todo-Poderoso, pois aqui vindo para cumprir um dever de piedade, por acaso ao Céu ofendi querendo a ele me dedicar? Este era, pois, o preço que dele devia esperar? Ó desígnios incompreensíveis da Providência, dignai-vos abrir os meus olhos se não querei que atente contra as vossas leis! Lágrimas amargas seguiram-se a estas reflexões, e nelas estava eu banhada, quando, ao despontar do dia, Omphale se aproximou do meu leito.


- Querida companheira disse-me - venho exortar-te a ter mais coragem. Nos primeiros dias chorei como tu e agora já me habituei. Faz como eu. São os primeiros momentos, pois não é só a obrigação de satisfazer aos desejos desenfreados desses devassos que faz o suplício de nossa vida. É antes a perda de nossa liberdade, - a maneira brutal como nos tratam nesta infame casa...


As infelizes se consolavam vendo que outras também sofriam junto a elas. Por maiores que fossem minhas dores, deixei-as de lado por um instante para que minha companheira me instruísse a propósito dos males que me esperavam.


- Ouve - disse Omphale, sentando-se no meu leito - vou te dizer em confiança, mas lembra-te de que dela não deves abusar... O pior dos nossos males, minha querida, é a incerteza de nossa sorte. É impossível dizer o que ocorre quando se deixa este lugar. Temos tantas provas que não tentamos adquirir nossa liberdade. Pois as jovens que assim serviram aos monges jamais existirão para o mundo. Eles próprios nos previnem, e não escondem que este retiro é o nosso túmulo. Não há ano em que não escapulam duas ou três jovens. Mas o que vem a ser delas, se eles a pegam? Embora as que fujam prometam que tudo farão contra o convento ou se esforçarão para nos libertar, na realidade delas jamais ouvimos uma palavra. Eles amainam as invectivas das que partem ou deixam-nas em situação de não incomodá-los? Quando indagamos das que chegam que notícias nos podem dar das que se foram antes, elas dizem nada saber informar. Que aconteceu a estas infelizes? Eis o que nos tortura, Sofia, eis aí a incerteza que faz o verdadeiro tormento dos nossos dias. Há quatorze anos que estou nesta casa e daqui eu vi partir mais de cinqüenta jovens... onde estão? Por que todas elas juram que nos ajudarão e nenhuma até agora pronunciou uma única palavra em nosso favor? Somos quatro... pelo menos neste quarto, pois estamos persuadidas da existência de uma outra torre que corresponde a esta, e onde conservam igual número de moças. Alguns traços da conduta deles, muitos dos seus propósitos nos tem convencido disso. Mas se realmente existem estas companheiras, jamais as vimos. Uma das maiores provas que temos disto é que não se servem de nós duas noites seguidas. Abusaram ontem de nós, deixar-nos-ão hoje repousar. Certamente estes devassos não fazem um dia sequer de abstinência. Nada justifica estas nossas férias, nem a idade, nem a mudança dos nossos traços, o tédio, os desgostos. Só o capricho deles nos obriga a este repouso, onde ficamos sem saber de que maneira poderemos aproveitá-lo. Aqui esteve uma mulher de setenta anos, que só pôde partir no verão passado. Fazia sessenta anos que vivia aqui e, enquanto guardavam esta, vi trazerem para cá mais de doze que não tinham mais que dezesseis anos de idade. Vi delas que partiram três dias após terem chegado, outras partiram depois de um mês, e outras só vários anos depois. Não há a este respeito nenhuma regra a não ser a vontade e os caprichos deles. A conduta em nada influi. Vi delas que iam além do desejo deles, e que partiram seis semanas depois. Outras, que nenhuma atração tinham, eles guardaram por um bom número de anos. É inútil, pois, prescrever a uma novata qualquer espécie de conduta. A fantasia deles viola todas as leis e não se está em nada segura com o que a ela diz respeito. No que se refere aos monges, poucas mudanças há. Rafael está aqui há quinze anos, Clemente há dezesseis que mora aqui, Jerônimo faz mais de trinta e Antonino apenas dez. Foi o único que vi chegar para substituir um monge de sessenta anos que morreu ao meio de um excesso de libertinagem... Este Rafael, natural de Florença, é parente próximo do papa, com quem, aliás, se dá muito bem. Foi depois que ele por cá apareceu que a virgem milagrosa logrou assegurar a reputação do convento e impedir os maldizentes de observar o que se passa por aqui. A casa já estava erguida quando aqui cheguei. Há quase oitenta anos que ela, diz-se, foi construída e que todos os guardiões que aqui chegam conservam sempre tudo em boa ordem. Rafael, um dos monges mais libertinos do seu século, para cá veio por já a conhecer e sua intenção é a de manter o mais que puder os secretos privilégios que aqui se goza. Somos da diocese de Auxerre, e por estes lugares jamais vimos chegar um bispo. Em geral, quase ninguém vem cá. Com exceção da época da festa, em fins de outubro, durante o ano por estas bandas não aparecem mais de dez pessoas. Qualquer estranho que aqui chegue, o guardião cuida de recebê-lo o melhor possível e o impressiona com sua aparência de religiosidade e austeridade. Assim é que retornam contentes tendo a melhor impressão desta casa e assim é que estes celerados monges se aproveitam da boa fé do povo e da credulidade dos devotos. De resto, nada mais severo que os regulamentos de nossa conduta e nada mais perigoso para nós do que infringí-los no que quer que seja. É preciso que eu entre em detalhes sobre este assunto, continuou a minha instrutora, porque aqui de nada vale dizer: Não me castigue pela infração desta lei, pois eu a ignorava. É necessário, pois, instruir-se com as companheiras ou adivinhar tudo por si mesma. Não te previnem de nada, e punir-te-ão por tudo. A única correção admitida é o chicote. Um dos prazeres que tem esses celerados é o de punir. Castigar-te-ão por não teres cometido hoje nenhuma falta, ou por teres cometido alguma. Todos eles são dados a esta maneira de castigar e o oficio de punidor todos os quatro sabem exercer muito bem. Não se passa um dia sem que se chame o regente do dia, que é quem recebe os informes diários de cada quarto, quem se encarrega do policiamento no interior do serralho, de tudo o que ocorrer nos jantares em que somos admitidas, quem taxa as faltas e as pune. Recordemos cada um destes castigos. Somos obrigadas a estar lavadas e vestidas às nove horas da manhã. Aí pelas dez trazem pão e água para o desjejum. Às duas horas, servem o jantar, que consiste em uma sopa de legumes, às vezes algumas frutas e uma garrafa de vinho para nós quatro. Todos os dias, de Inverno a verão, nos vem regularmente visitar às cinco horas da tarde. É quando então recebe as delações da deã. E as queixas que esta possa fazer contra a conduta das mulheres do seu quarto, se estão ou não de bom humor, se se levantaram à hora certa, se estão corretas na toilette da cabeça e no asseio do resto do corpo, se comeram como devem e se não estão pensando em arquitetar alguma fuga. É necessário um relatório completo destas coisas e se não o fazemos seremos punidas. Então, o regente do dia vai até ao nosso toalete, passando em revista as diferentes coisas. Feita a sua tarefa, dificilmente o regente sai sem se divertir com uma de nós, ou, freqüentemente, com as quatro. Desde que ele se retira, e caso não seja o nosso dia de ir jantar, então podemos ler ou conversar, distrairmo-nos, e ir deitar quando bem entendermos. Se, ao contrário, for dia de ir jantar com os monges, toca uma sineta, que nos adverte ser hora de prepararmo-nos. O próprio regente nos vem buscar, vamos para a sala onde nos encontraste e ali chegando a primeira coisa a ser feita é a leitura do caderno das faltas que se cometeu desde a última vez que ali estivemos. Inicialmente as faltas cometidas no último jantar, ou seja, as negligências, a frieza diante dos monges na hora de os servir, falta de previdência, de submissão ou de asseio. A estas acrescentam as faltas cometidas no quarto durante os dois dias, conforme o informe da deã. As delinqüentes se põem no meio da sala, em círculo. O regente diz a falta e o castigo correspondente. Em seguida elas são despidas pela deã ou a subdeã no caso da primeira ter cometido a falta, e então o regente aplica a punição prescrita de maneira tão violenta que dificilmente alguém dela se esquece. Estes criminosos se conduzem com tanto artifício que não há um só dia em que não ocorram tais execuções. Acabada a primeira parte, então começam as orgias, impossível de serem contadas em todos os detalhes. Tão estranhos caprichos por acaso poderão ser regrados? O objetivo essencial é nada recusar... tudo prever, ainda que assim o faça, não se tem às vezes nenhuma segurança. Junta-se em meio à orgia. Somos admitidas nesta refeição, sempre mais apurada e suntuosa que as nossas. As bacanais têm início quando os monges começam a se embriagar. À meia-noite todos se separam e cada um pode levar uma de nós para passar a noite, indo esta favorita deitar-se na cela daquele que a escolheu, retornando à nossa convivência na manhã seguinte. As outras que voltam para os quartos, encontram estes limpos, as camas e os guarda-roupas arrumados. Pela manhã pode acontecer que, em se levantando antes da hora do desjejum, ocorra que um monge exija uma de nós na sua cela. O irmão que cuida de nós é que vem nos buscar, conduzindo-nos para a cela do monge que nos cobiça, o qual nos traz de volta ou nos faz conduzir pelo mesmo irmão caso ele tenha mais necessidade de nós. Este molosso que guarda os nossos quartos e algumas vezes nos conduz, é um velho de setenta anos, vesgo, troncho e mudo. Os outros o ajudam no serviço da casa: um prepara a comida, outro arruma as celas dos monges, varre toda a casa, e ajuda na cozinha, e o terceiro é o porteiro, que tu viste ao entrar. Destes todos, só vemos o que nos serve e a menor palavra a ele dirigida constitui um dos nossos crimes graves. o guardião algumas vezes vem nos visitar. Há, então, o uso de algumas cerimônias que a prática te ensinará e cuja inobservância constitui crime, porque cada dia eles aumentam a vigilância pelo prazer de punir pelo que não se cumpriu. Rafael sempre vem nos visitar com algum projeto, e estes são sempre ou cruéis ou irregulares, como terás oportunidade de constatar. Vivemos sempre trancadas, e em nenhuma ocasião do ano nos deixam tomar ar, embora haja um grande jardim. Mas por não ser provido de grades, teme-se uma fuga que seria muito perigosa, pois poder-se-ia fazer saber à justiça temporal ou espiritual de todos os crimes que aqui são praticados e aos quais se poderia por cobro. Para nós não há nenhum dever religioso. É-nos proibido falar ou pensar nisto, o que constitui uma das faltas mais suscetíveis de punição. Eis tudo o que posso dizer, minha cara companheira, acrescentou a nossa deã, e só a experiência poderá te ensinar o resto. Tem coragem, se possível for, e renuncia para sempre ao mundo, pois não há exemplo de uma mulher que desta casa tenha saído ter podido revê-lo.


Este último ponto me inquietou horrivelmente, e perguntei a Omphale qual era a sua verdadeira opinião sobre a sorte das mulheres ali encerradas.


- Que queres que eu te responda - disse-me - se a todas as horas a esperança destrói esta infeliz opinião? Tudo me prova que um túmulo nos serve de retiro e mil outras idéias que não são mais que filhas da esperança vem a todo instante destruir esta fatal convicção. Só pela manhã somos prevenidas do destino que pensam nos dar. O regente do dia vem antes do desjejum e diz, suponho: Omphale, arruma tua trouxa, o convento te dispensa ao anoitecer virei te buscar. Depois ele sai. A dispensada abraça suas companheiras, prometendo ser-lhes útil por mil modos diferentes, chora e promete divulgar o que se passa aqui: soa a hora, o monge vem, a mulher parte e nunca mais se ouve falar nela. No entanto, se for dia de ir jantar, tudo se passa como ordinário; a única diferença nestes dias é que os monges comem menos, bebem muito mais, mandam-nos deitar cedo e não levam nenhuma de nós para dormir. - Cara amiga - disse eu à deã agradecendo as suas Intenções - talvez não tenhas criado a não ser filhas que não possuem fôrça para te cumprir a palavra... Queres fazer comigo esta promessa mútua? Desde logo te juro, por tudo o que há no mundo de mais sagrado: ou morrerei ou destruirei estas infâmias. Por sua vez, promete-me também?


- Certamente - disse-me Omphale - mas fica certa da inutilidade dessas promessas. Mulheres mais velhas que tu, se possível talvez ainda mais irritadas, pertencentes a boas famílias da província e tendo assim mais armas que a que tu tens, mulheres, em suma, que teriam derramado seu sangue por mim, não puderam cumprir o mesmo juramento. Permite que, com minha experiência, te diga considerar em vão o que dissemos e não levá-lo a sério.



"A história de Justine"
Marquês de Sade