quarta-feira, 25 de junho de 2008

"O triunfo da filosofia"


O triunfo da filosofia
por Marquês de Sade

O triunfo da Filosofia seria iluminar os caminhos obscuros de que se serve a Providência para alcançar os fins que propõe ao homem e traçar depois um plano de conduta, capacitando este infeliz indivíduo bípede - perpetuamente sacudido pelos caprichos desse ser que, diz-se, o dirige tão despoticamente - a interpretar os decretos dessa Providência a seu respeito e evitar os caprichos estranhos desta fatalidade à qual se dá vinte nomes diferentes, sem ter sido ainda definida.

Se, partindo de nossas convenções sociais e jamais nos separando do respeito que elas nos inculcaram através da educação, chegar infelizmente a acontecer que, pela perversidade dos outros, não tenhamos encontrado senão espinhos, enquanto os maus colhem apenas rosas - as, pessoas privadas, dos fundamentos de uma virtude comprovada, para se colocarem acima das reflexões fornecidas por estas tristes circunstâncias, não calcularão que é melhor se abandonarem à torrente do que resistir? E não dirão que a Virtude - por mais bela que seja, ocasião em que infelizmente ela se torna mais fraca para lutar contra o vício - venha a ser o pior partido que se possa tomar e que, no caso de um século inteiramente corrompido, o mais seguro é fazer como os outros?

Por mais instruídas que se queira que elas sejam, e abusando das luzes que adquiriram, não dirão essas pessoas como o anjo Jesrad de Zadig, para quem não há mal que não traga um bem; não acrescentarão que, desde que não há, na constituição imperfeita do nosso mundo mau, uma soma de males igual à de bem, e que é essencial para a manutenção do equilíbrio que haja tanto bons quanto maus, e que assim, no plano geral, dá no mesmo que alguém, indiferentemente, seja bom ou mau? E também não argumentarão que, se a infelicidade persegue a virtude; e que, se a prosperidade quase sempre acompanha o vício, sendo ambos coisa igual ante a natureza - que vale mais: tomar o partido dos maus, que prosperam, ou o dos virtuosos, que perecem?

É, pois, importante prevenir esses sofismas perigosos da Filosofia e essencial mostrar que os exemplos da infeliz virtude presente a uma alma corrompida, na qual ainda restam alguns bons princípios, podem levar esta alma ao bem de maneira tão segura como se oferecesse, neste caminho da virtude, as palmas mais brilhantes e as mais lisonjeiras recompensas. De fato, é sem dúvida cruel ter de pintar uma multidão de infelicidades acabrunhadoras da doce e sensível mulher que melhor respeita a virtude, e, por outro lado, a mais brilhante fortuna daquela que a menospreza toda a vida. Mas, se do esboço de ambos os quadros nasce por sua vez um bem, poder-se-á censurar a alguém por os ter oferecido ao público? Poder-se-á ter remorso por estabelecer um fato de onde resultará, para o sábio que lê com proveito a lição tão útil da submissão às ordens da Providência, uma parte do desenvolvimento dos seus enigmas mais secretos e a advertência fatal de nos ater aos nossos deveres, para que o Céu lance ao nosso lado seres que parecem ter executado seus deveres da melhor maneira possível?

Eis ai os sentimentos que nos levam a tomar da pena. E, em consideração à sua boa-fé, pedimos aos nossos leitores um pouco de atenção misturada de interesse para os infortúnios da triste e miserável Justine.


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Fonte: Justine; ou, Os infortúnios da virtude. Rio de Janeiro, Disal, 1968.
Tradução de D. Accioly.