quarta-feira, 25 de junho de 2008

"Os sofrimentos da virtude"

1. Justine no convento de Santa Maria dos Bosques


Não me abandonaram, em quaisquer circunstâncias de minha vida, os sentimentos de religiosidade. Desprezando os vãos sofismas dos espíritos fortes, acreditando que tudo isto vinha antes da libertinagem do que de uma firme convicção, opus-lhes meu coração e minha consciência e nestes encontrava tudo o que era preciso responder. Todas as vezes em que era forçada, para infelicidade minha, a negligenciar meus deveres de piedade, reparava o erro na primeira oportunidade que me surgisse.


Acabara de partir de Auxerre, a 7 de junho - não me esquecerei nunca desta data - tinha andado umas duas léguas, o calor aumentava cada vez mais, e resolvi subir uma elevação coberta por um pequeno bosque, distanciado um pouco para a esquerda, para ali me refrescar e cochilar um par de horas por menor preço que num albergue, e mais seguro que no caminho. Subi e abriguei-me à sombra de um carvalho onde adormeci após um repasto frugal composto de pão e vinho. Gozei de mais de duas horas de tranqüilidade. Ao despertar, pus-me a contemplar a paisagem que se estendia diante dos meus olhos, sempre à esquerda do caminho. Acreditei ver a mais de três léguas, distante de mim, no meio do uma floresta que se estendia a perder de vista, um pequeno campanário pairar modestamente no ar.


- Doce solidão - disse a mim mesma - quanto me Inveja a tua existência! Aquilo deve ser o asilo de alguns religiosos ou de alguns santos solitários, que só se ocupam com os seus deveres, inteiramente consagrados à religião, longe desta sociedade perniciosa em que o crime sempre triunfa sua luta incessante contra a inocência. Estou certa de que todas as virtudes moram ali.
Perdia-me nestas reflexões quando uma jovem da minha idade, que vigiava uns carneiros na planície, surgiu-me diante dos olhos. Indaguei sobre que habitação seria aquela. Respondeu-me ser um convento de recoletos, onde viviam quatro frades solitários, os quais em nada se achava igual em religião, continência e sobriedade.


- Ali - disse-me a jovem - se vai uma vez por ano, em peregrinação a uma virgem milagrosa, de quem as pessoas piedosas conseguem o que pedem.


Levada pelo desejo de ir até lá implorar aos pés da santa mãe de Deus por socorro, indaguei da jovem se queria me acompanhar. Disse-me não o poder, pois sua mãe a esperava em casa. Mas que não era difícil alcançar o convento pelo caminho que levava até lá. Indicou-mo, acrescentando ser o guardião o homem mais santo e respeitável que havia naqueles arredores e que ele iria me receber às mil maravilhas, e oferecer-me-ia ajuda, caso eu necessitasse.


- O reverendo se chama Rafael - acrescentou a Jovem - é Italiano de nascimento, mas viveu quase toda a sua vida aqui na França, ama esta solidão e já recusou excelentes benefícios que o papa, seu parente, lhe ofereceu. É um homem de família nobre, servidor, bom, cheio de zelo e piedade, de quase quarenta anos de idade e a quem neste lugar todos olham como a um santo.


A narrativa da pastora tocou-me mais ainda o coração, e não mais me pude conter no desejo de ir em peregrinação ao convento, para então expiar por atos piedosos a negligência em que até então vivera. Dei um pouco do que tinha à jovem pastora e eis-me a caminho de Santa Maria dos Bosques, que era o nome do convento para onde me dirigia. Quando alcancei a planície não mais avistei o campanário, só podendo me guiar pela floresta. Esquecera-me de perguntar à jovem quantas léguas distava o convento do lugar em que me encontrava e logo percebi que a distância era bem maior que a estimativa que fizera. Mas nada me desencorajou e assim cheguei à borda da floresta; e vendo que ainda contava com uma boa parte do dia, resolvi nela penetrar, quase segura de chegar ao convento ao cair da tarde... Nem um rastro de ser humano apareceu diante dos meus olhos, nem uma casa sequer e não tinha eu por caminho mais que uma trilha pouco batida pelos pés humanos, e que seguia quase ao acaso. Caminhara cinco léguas desde a colina onde estivera e de onde pensara chegar ao meu destino, vencendo pouco mais de três. Nada aparecia diante dos meus olhos, quando, estando o Sol prestes a se por, ouvi, a menos de uma légua, o som de um sino. Segui em direção ao toque; apressei-me, a trilha se alargava um pouco... e ao cabo de uma hora de caminho, desde que ouvira o toque do sino, percebi algumas sebes e logo depois o convento. Nada mais agreste que estes páramos. Nenhuma habitação nas vizinhanças, pois a mais próxima distava pelo menos três léguas da floresta. O convento assentava no fundo do vale, sendo necessário descer para alcançá-lo, dai o motivo de ter perdido o campanário de vista ao deixar a colina. A cabana de um irmão jardineiro era pegada às paredes do abrigo interior e era para ali que se devia Ir antes de nele penetrar. Indaguei ao santo eremita se era permitido falar ao padre-guardião... perguntou-me o que eu desejava... disse-lhe ser um dever religioso... que uma promessa me trouxera àquele retiro piedoso e estaria recompensada de todas as tribulações por que passara para ali chegar, se me fosse permitido cair de joelhos aos pés da Virgem e do santo diretor em cuja casa se encontra a imagem tão milagrosa. O irmão, convidando-me para descansar, penetrou no convento e como fazia noite e os padres estavam - disse - jantando, ele demoraria um Pouco a retornar. Afinal, apareceu um religioso.


- Eis o padre Clemente, senhorita - disse o irmão. É o ecônomo da casa e vem saber se pelo que deseja vale a pena interromper o padre guardião.


O padre Clemente era um homem de quarenta e cinco anos, fortíssimo, porte gigantesco, olhar selvagem e sombrio, voz dura e rouca, que de inicio me fez mais medo que consolo... Um tremor involuntário tomou conta de mim e, indefesa, recordei todas as infelicidades que minha memória guardava.


- Que desejas? - foi-me dizendo este monge de aspecto rígido. - Por acaso isto são horas de vir a uma Igreja? Tens a aparência de uma aventureira.


- Santo homem - disse eu prostrando-me - acreditei que qualquer hora era sempre hora de vir à casa de Deus. Venho de longe, cheia de fervor e devoção, e peço, se possível, para confessar, e, quando tiverdes conhecido tudo o que guarda a minha consciência, então vereis se sou ou não digna de prostrar-me aos pés da Imagem milagrosa, que guardais em vossa santa casa.


- Não é hora de se confessar - disse o monge amainando a voz. - Onde vais passar a noite? Não temos lugar para te abrigar. Seria melhor vires pela manhã.


Nesta altura lhe disse todos os motivos que me impediam de assim fazer e sem nada me dizer foi dar conta de tudo ao guardião. Alguns minutos depois estava aberta a porta da igreja, e o próprio padre-guardião se dirigia para mim na cabana do jardineiro e me convidava a entrar no convento com ele. O padre Rafael, do qual posso dar uma idéia, era um homem de idade, como me tinham dito, mas a quem não se dava mais de quarenta anos. Era delgado, bastante alto, com um ar doce e espiritual, falando corretamente o francês com leve sotaque italiano, maneiroso e tão amável por fora quanto sombrio e selvagem por dentro, quanto ao que terei ocasião de convencer-vos.


- Minha filha - disse-me com certa graça - embora a hora não seja conveniente e não tenhamos o costume de receber ninguém a estas horas, eu vou ouvir a tua confissão e providenciaremos os meios de agasalhar-te esta noite até que amanheça, quando poderás orar diante da imagem santa que possuímos em nossa igreja.


Dito isto, o monge acendeu algumas lâmpadas ao redor do confessionário, e convidou-me para ali tomar o meu lugar e, mandando o irmão que o acompanhava retirar-se, fechou todas as portas e exortou-me a confiar nele com a segurança. Inteiramente reposta, diante de um homem, na aparência tão bondoso, dos temores que me causara o padre Clemente, após humilhar-me aos pés de meu diretor, abri-lhe toda a minha alma, e conforme a minha bondade e confiança, que trago de ordinário comigo, contei-lhe tudo o que a mim tocara. Confessei-lhe os meus erros e confiei-lhe todas as minhas infelicidades, nada ocultando, nem mesmo a marca oprobriosa que o execrável Rodin me fizera.


O padre Rafael escutou-me com a maior atenção, e fez-me repetir vários detalhes, guardando sempre um ar de piedade e de interesse... principalmente no que se referia aos seguintes pontos:
1. Se era verdade que eu era órfã e de Paris.
2. Se era certo não ter eu nem parentes, nem amigos, nem proteção, nem ninguém a quem escrever.
3. Se eu só tinha confiado à pastora meu desígnio de vir ao convento e se não tinha marcado um encontro para quando voltasse.
4. Se era certo que eu era virgem e só tivesse vinte e dois anos.
5. Se eu estava certa de que ninguém me seguira o que quem quer que fosse me tinha visto entrar no convento.


Esclarecidos estes pontos, respondeu-me com ar de ingenuidade:
- Está bem - disse, levantando-se e tomando-me pela mão - vem, minha filha. Já é muito tarde para se ir orar à virgem esta noite, desculpar-te-ei, amanhã pela manhã, aos pés da santa. Agora vamos cuidar de jantar e deitar.


Assim dizendo, me levou à sacristia.
- E aonde - indaguei-lhe, tomada de uma incontrolável inquietação. - Onde, meu padre. No interior de vossa casa?


- Onde mais então, linda peregrina - respondeu-me o monge, abrindo-me uma das portas do claustro que dava para a sacristia, onde me introduziu... - O quê? Então temes passar a noite com quatro religiosos? Oh! verás, meu anjo, que não somos tão beatos quanto aparentamos e que sabemos nos divertir com uma linda jovem.


Tais palavras transpassaram-me: ó justo Céu, disse a mim mesma, serei ainda vitima de meus bons sentimentos e do desejo que trago comigo de me aproximar do que de mais respeitável tem a religião? E ides, pois, punir-mo como se tudo isto fosse um crime? No entanto, avançávamos na escuridão. Ao término de um dos lados do claustro havia uma escada. O monge me fez passar para diante dele, e percebeu que havia um pouco de resistência de minha parte.


- Tratante - disse com cólera, mudando o seu ar insinuante por um de maior insolência - imaginais que há tempo para algum recuo? Ah! com os seiscentos mil diabos, agora tu vais saber se não era preferível cair num couro de ladrões a cair entre quatro recoletos.


Fui tomada de tal pavor que não tive tempo para alarmar-me com tais palavras. Apenas me puseram de sobreaviso sobre o que me esperava. A porta se abriu, e vi em redor de uma mesa três monges e três moças, todos os seis na situação mais indecente que se possa imaginar. Duas destas jovens estavam completamente nuas, a terceira estava se despindo ainda, e os monges estavam quase nus...


- Meus amigos - disse Rafael entrando - faltava uma, ei-la aqui. Permiti que vos apresente uma coisa extraordinária: eis uma Lucrécia que traz nas costas a marca das mulheres de má vida e eis que - continuou, fazendo um gesto dos mais indecentes e significativos... - e eis, meus amigos, a prova certa de uma virgindade reconhecida.


Explosões de risos se fizeram ouvir por toda a sala, em resposta a tão estranha recepção, e Clemente, aquele a quem eu vira primeiro, gritou logo, já meio ébrio, que era necessário verificar ali mesmo se eu era virgem ou não. A esta altura dos acontecimentos sou obrigada a interromper a narrativa para pintar que tipo de gente era aquela. Deixar-vos-ei o menos possível em suspense, no que se refere à minha situação.


Conheceis suficientemente Rafael e Clemente. Limitar-me-ei a pintar os outros dois. Antonino, o terceiro dos padres do convento, era um homem de pequena estatura, de quarenta anos de idade, seco, franzino, de temperamento fogoso, de aspecto de sátiro cabeludo como um urso, libertino desenfreado e de uma teimosia e maldade sem igual. O padre Jerônimo, deão da casa, era um velho libertino de sessenta anos, tão duro e bruto quanto Clemente, ainda mais ébrio do que ele e que, já não podendo por meios comuns satisfazer seus lúbricos desejos, era levado, se queria gozar a volúpia da lubricidade, a recorrer a outros meios muito mais depravados e indignos.


Florette era a mais jovem das mulheres, natural de Dijon, de cerca de quatorze anos de idade, filha de um rico burguês dessa cidade e trazida pelos companheiros de Rafael, que sendo rico e de grande crédito na sua ordem, não costumava negligenciar nada que servisse à satisfação de seus desejos. Era morena, de lindos olhos e de trato picante. Cornélia tinha cerca de dezesseis anos, era loura, de boa presença, belos cabelos, pele macia e de porte mais belo que se possa imaginar. Era de Auxerre, filha de um comerciante de vinho e que fora diretamente seduzida por Rafael, que a conduziu secretamente à sua armadilha. Omphale era uma mulher de mais de trinta anos, cândida e agradável, de belas formas, cabelos longos, lindo pescoço e possuidora dos mais ternos olhos que eu já vira. Era filha de um abastado vinhateiro de Joigny, roubada à sua família aos dezesseis anos de idade pelas seduções de Jerônimo, às vésperas de seu casamento com um homem que iria fazer, certamente, sua felicidade. Tal a sociedade em que eu iria conviver, tal a cloaca de impureza e imundície onde de maneira vã pensei encontrar virtudes respeitáveis.
Já fiz saber que estando em meio tão miserável, só me cabia imitar a submissão de minhas companheiras.


- Deves saber - disse Rafael - que de nada adianta resistir em lugar tão inóspito para onde te conduziu tua má estrela. Confessaste-me ter padecido, se é verdade o que disseste, muitas infelicidades, mas a pior delas para uma jovem virtuosa ainda não consta na tua lista de infortúnios. Por acaso é natural ser virgem na tua Idade? Não é pois um milagre tua virgindade ter durado tanto tempo... ? Eis aí as tuas companheiras, que, como tu, se recusavam a nos servir, e como rapidamente reconheceste, terminaram por se submeter, para não serem maltratadas. Na situação em que te encontras, Sofia, como pensas em te defender? Pensa no abandono em que te encontras; e como tu mesma disseste, não tens nem pais nem amigos. Pensa no deserto em que estás, sem ajuda, ignorada de todo mundo, nas mãos de quatro libertinos que nada farão para te poupar... a quem vais recorrer, por acaso ao deus a quem acabas de implorar com tanto zelo, e que lucro virá para ti a não ser o de empurrar-te com mais força para a armadilha? Saibas que não existe humano ou divino que te possa arrancar de nossas mãos e não há na ordem das coisas possíveis nem milagres nem nenhum meio que te possa deixar conservar por mais tempo a tua virgindade, que te possa impedir de ser, por todos os modos imagináveis, a presa do excesso de lubricidade em que nós quatro vamos mergulhar contigo. Desnuda-te, Sofia, e que a tua resignação provoque bondade de nossa parte, que, imediatamente caso não te submetas, será submetida pelos mais duros e ignominiosos tratamentos, tratamentos que nos irritarão mais ainda, sem ao menos te colocar ao abrigo de nossa intemperança e de nossas brutalidades.


Logo conheci que tal conversa não me oferecia nenhum recurso, e podia então eu empregar o que meu coração indicava e que a natureza ainda me reservava? Joguei-me aos pés de Rafael, supliquei-lhe não abusar de mim, inundei de lágrimas os seus joelhos e chorando utilizei o que a minha alma oferecia de mais patético. Ignorava que as lágrimas eram um motivo a mais de atração aos olhos do crime e da devassidão, que tudo o que eu fazia para comover estes monstros somente os inflama-va... Rafael se levanta furiosamente.


Agarra esta marota, Antonino - disse franzindo a testa - e poem-na nua imediatamente diante de nós, agarra-a, pois entre homens como nós não pode haver compaixão.
Antonino agarrou-me com um braço seco e nervoso, e misturando seus propósitos e juramentos terríveis, em dois minutos tirou-me tôdas as roupas, deixando-me nua diante dos olhos da assistência.


Eis aí que bela criatura - disse Jerônimo. - Que os raios destruam este convento se em trinta anos vi coisa mais linda.
Um momento - gritou o guardião - vamos por um pouco de ordem no que vamos fazer. Vocês conhecem, meus amigos, nossas fórmulas de recepcionar: que ela passe por todas elas, sem exceção de nenhuma, e que, durante este tempo, as três mulheres fiquem ao redor de nós para prever as necessidades de excitar-nos.


Imediatamente se formou um círculo, colocaram-me no centro e aí durante mais de duas horas examinaram-me, observaram-me, apalparam-me, e de quando em vez ouvia de cada um destes libertinos ou elogios ou criticas. Permiti-me, senhora disse a bela prisioneira corando bastante neste ponto ocultar uma parte dos detalhes obscenos que ocorreram nesta primeira cerimônia. Que a vossa imaginação possa representar tudo o que o deboche pode, em casos como este, ditar aos libertinos, e que ela imagine o que de minhas companheiras para mim podiam comparar, censurar, confrontar, discorrer, e, mesmo assim, a vossa imaginação não terá mais que uma ligeira idéia em comparação com os horrores de que seria vítima.


- Vamos - disse Rafael cujos desejos foram a tal ponto excitados que não mais podiam ser contidos - já está na hora de imolar a vítima. Que cada um de nós se prepare para fazê-la suportar seus prazeres preferidos.


O infeliz me colocou num sofá na posição própria à prática do ato execrável mandando que Antonino e Clemente me segurassem... Rafael, italiano, monge e depravado, não vacilou em gozar o prazer de um modo ultrajoso, deixando-me ainda virgem. Oh! Que completo desvario! Pois estes homens abomináveis se vangloriavam de esquecer a natureza na escolha de seus prazeres indignos. Clemente avançou para mim, excitado pelo espetáculo que seu superior lhe oferecera, e mais ainda que observara. Declarou-me não ser mais perigoso do que o seu guardião, e que no lugar onde ia prestar sua homenagem deixaria minha virtude sem perigo. Fez-me ficar de quatro pés e agarrando-se a mim nesta posição satisfez sua vontade em um lugar que, durante o sacrifício, me foi impossível reclamar a sua irregularidade.


Seguiu-se Jerônimo cujo templo era o mesmo que o que Rafael usara mas sem chegar ao santuário. Contente de observar o adro daquele templo, emocionado pelos episódios primitivos cuja obscenidade não se pode pintar, ele satisfez seus desejos pelos meios bárbaros de que quase fui vítima em casa de Dubourg e nas mãos de Bressac.


- Eis aí as felizes preparações - disse Antonino agarrando-me. - Vem franguinha, vem que vou te vingar da irregularidade de meus confrades, e colher as primícias antes que me abandone a intemperança...


Mas que detalhes ... Deus Todo-Poderoso... . é-me impossível vos pintar. Diga-se apenas que este celerado, o mais libertino dos quatro, embora parecesse o menos distanciado do que manda a natureza, não consentisse, em dela se aproximando, por um pouco mais de conformidade em seu culto, embora a sua menor aparência de depravação me ultrajasse mais ainda... Ora, se algumas vezes a minha imaginação pairou sobre este tipo de prazer, eu o acreditava tão casto como o deus que o inspirou, dando, de modo natural, para que servisse de consolação aos homens, quando nascidos do amor e do carinho. Estava eu bem longe de crer que o homem, a exemplo das bestas-feras não pudesse gozar sem que fizesse tremer suas companheiras. Provei-o e com tal grau de violência que as dores do rompimento natural de minha virgindade foram menores que as que eu poderia suportar neste perigoso ataque. Mas no momento mais agudo do rompimento de minha virgindade, Antonino começou a dar gritos tão furiosos, a fazer incursões verdadeiramente assassinas sobre todas as partes do meu corpo, a dar mordidas semelhantes às carícias sanguinolentas dos tigres, que, num dado instante, acreditei ser presa de algum animal selvagem que só se comprazia em me devorar. Acabados estes horrores, caí no altar onde fui imolada, quase inconsciente e sem poder mexer-me.


Rafael ordenou que as outras mulheres cuidassem de mim e me fizessem comer, quando então um acesso de intensa tristeza acometeu minha alma neste momento tão cruel. Não me consolei com a horrível idéia de ter perdido afinal a minha tão querida virgindade, pela qual eu sacrificaria cem vezes minha vida, nem em ser assim desonrada por aqueles de quem esperava as melhores ajudas e consolação moral. Chorei copiosamente, meus gritos estrondaram na sala, rolei por terra, arranquei os cabelos, supliquei aos meus carrascos que me tirassem a vida. Enquanto isto, os celerados, de coração frio a tais cenas, se deleitavam em novos prazeres com minhas companheiras e nem ligavam em acalmar minha dor ou consolar-me. Importunados por meus gritos, decidiram mandar-me repousar em um local onde não pudessem ouví-los... Omphale já ia me levando, quando o pérfido Rafael, me olhando com lubricidade apesar do meu estado, disse que não consentiria que me levassem sem que ele uma outra vez me possuísse... Do projeto à prática foi um salto... Mas tendo seus desejos necessidade de um maior grau de excitação, só se satisfez quando usou os cruéis modos de Jerônimo... Que excesso de libertinagem, meu Deus! Poderiam esses debochados ser assim tão ferozes para escolher o instante de uma crise de desespero moral tão violenta que eu suportava para submeter-me a um exercício tão bárbaro?


- Oh! por Deus! - disse Antonino, por sua vez me agarrando - nada melhor de se seguir que o exemplo de um superior e nada mais picante que a repetição: a dor dispõe ao prazer, pois estou convencido de que a bela jovem vai me tornar o mais feliz dos homens.


Apesar de minha repugnância, apesar dos meus gritos e das minhas súplicas, vim a ser, pela segunda vez, o desditoso recipiente dos insolentes desejos dêste miserável... Por fim, deixaram-me ir.


- Se não tivesse eu tomado a dianteira quando esta bela princesa chegou - disse Clemente - e ela daqui não sairia, por Deus!, sem satisfazer, pela segunda vez, as minhas paixões. Mas ela nada perde em esperar.


- A ela prometo a mesma coisa - disse Jerônimo, fazendo-me sentir o vigor de seu braço no momento em que eu passava por ele. - Mas por esta noite é bastante, vamos todos dormir.


Sendo Rafael da mesma opinião, puseram fim àquelas orgias. Ele retém consigo Florette, que sem dúvida ia com ele passar a noite. O restante do grupo se dispersou. Eu fiquei sob os cuidados de Omphale. Esta sultana de mais idade que as demais parecia encarregada de cuidar das outras. Levou-me, pois, ao nosso quarto em comum, uma espécie de torre quadrada, em cada ângulo havendo um leito. Um dos monges, de ordinário, seguia as jovens quando estas se retiravam, e fechava a porta de dois ou mais ferrolhos. Foi Clemente quem cuidou disto. Estando ali, era impossível escapar por onde quer que fosse, só havendo neste quarto um quartinho reservado à toalete, de janela de tal modo gradeada como as do lugar onde dormíamos. Além disso, havia uma espécie de móvel, uma cadeira e uma mesa junto ao leito, resguardado por uma imunda cortina de tela, alguns cofres de madeira, cadeiras furadas apropriadas para retrete, bidês e uma mesa comum de toalete. Tudo isto só percebi no outro dia. Logo que ali cheguei, só de minhas dores pude cuidar. Ó céus, disse para mim mesma, está escrito que nenhum ato de virtude emanará de meu coração sem a contrapartida de duras penas! Que mal fiz, ó Deus Todo-Poderoso, pois aqui vindo para cumprir um dever de piedade, por acaso ao Céu ofendi querendo a ele me dedicar? Este era, pois, o preço que dele devia esperar? Ó desígnios incompreensíveis da Providência, dignai-vos abrir os meus olhos se não querei que atente contra as vossas leis! Lágrimas amargas seguiram-se a estas reflexões, e nelas estava eu banhada, quando, ao despontar do dia, Omphale se aproximou do meu leito.


- Querida companheira disse-me - venho exortar-te a ter mais coragem. Nos primeiros dias chorei como tu e agora já me habituei. Faz como eu. São os primeiros momentos, pois não é só a obrigação de satisfazer aos desejos desenfreados desses devassos que faz o suplício de nossa vida. É antes a perda de nossa liberdade, - a maneira brutal como nos tratam nesta infame casa...


As infelizes se consolavam vendo que outras também sofriam junto a elas. Por maiores que fossem minhas dores, deixei-as de lado por um instante para que minha companheira me instruísse a propósito dos males que me esperavam.


- Ouve - disse Omphale, sentando-se no meu leito - vou te dizer em confiança, mas lembra-te de que dela não deves abusar... O pior dos nossos males, minha querida, é a incerteza de nossa sorte. É impossível dizer o que ocorre quando se deixa este lugar. Temos tantas provas que não tentamos adquirir nossa liberdade. Pois as jovens que assim serviram aos monges jamais existirão para o mundo. Eles próprios nos previnem, e não escondem que este retiro é o nosso túmulo. Não há ano em que não escapulam duas ou três jovens. Mas o que vem a ser delas, se eles a pegam? Embora as que fujam prometam que tudo farão contra o convento ou se esforçarão para nos libertar, na realidade delas jamais ouvimos uma palavra. Eles amainam as invectivas das que partem ou deixam-nas em situação de não incomodá-los? Quando indagamos das que chegam que notícias nos podem dar das que se foram antes, elas dizem nada saber informar. Que aconteceu a estas infelizes? Eis o que nos tortura, Sofia, eis aí a incerteza que faz o verdadeiro tormento dos nossos dias. Há quatorze anos que estou nesta casa e daqui eu vi partir mais de cinqüenta jovens... onde estão? Por que todas elas juram que nos ajudarão e nenhuma até agora pronunciou uma única palavra em nosso favor? Somos quatro... pelo menos neste quarto, pois estamos persuadidas da existência de uma outra torre que corresponde a esta, e onde conservam igual número de moças. Alguns traços da conduta deles, muitos dos seus propósitos nos tem convencido disso. Mas se realmente existem estas companheiras, jamais as vimos. Uma das maiores provas que temos disto é que não se servem de nós duas noites seguidas. Abusaram ontem de nós, deixar-nos-ão hoje repousar. Certamente estes devassos não fazem um dia sequer de abstinência. Nada justifica estas nossas férias, nem a idade, nem a mudança dos nossos traços, o tédio, os desgostos. Só o capricho deles nos obriga a este repouso, onde ficamos sem saber de que maneira poderemos aproveitá-lo. Aqui esteve uma mulher de setenta anos, que só pôde partir no verão passado. Fazia sessenta anos que vivia aqui e, enquanto guardavam esta, vi trazerem para cá mais de doze que não tinham mais que dezesseis anos de idade. Vi delas que partiram três dias após terem chegado, outras partiram depois de um mês, e outras só vários anos depois. Não há a este respeito nenhuma regra a não ser a vontade e os caprichos deles. A conduta em nada influi. Vi delas que iam além do desejo deles, e que partiram seis semanas depois. Outras, que nenhuma atração tinham, eles guardaram por um bom número de anos. É inútil, pois, prescrever a uma novata qualquer espécie de conduta. A fantasia deles viola todas as leis e não se está em nada segura com o que a ela diz respeito. No que se refere aos monges, poucas mudanças há. Rafael está aqui há quinze anos, Clemente há dezesseis que mora aqui, Jerônimo faz mais de trinta e Antonino apenas dez. Foi o único que vi chegar para substituir um monge de sessenta anos que morreu ao meio de um excesso de libertinagem... Este Rafael, natural de Florença, é parente próximo do papa, com quem, aliás, se dá muito bem. Foi depois que ele por cá apareceu que a virgem milagrosa logrou assegurar a reputação do convento e impedir os maldizentes de observar o que se passa por aqui. A casa já estava erguida quando aqui cheguei. Há quase oitenta anos que ela, diz-se, foi construída e que todos os guardiões que aqui chegam conservam sempre tudo em boa ordem. Rafael, um dos monges mais libertinos do seu século, para cá veio por já a conhecer e sua intenção é a de manter o mais que puder os secretos privilégios que aqui se goza. Somos da diocese de Auxerre, e por estes lugares jamais vimos chegar um bispo. Em geral, quase ninguém vem cá. Com exceção da época da festa, em fins de outubro, durante o ano por estas bandas não aparecem mais de dez pessoas. Qualquer estranho que aqui chegue, o guardião cuida de recebê-lo o melhor possível e o impressiona com sua aparência de religiosidade e austeridade. Assim é que retornam contentes tendo a melhor impressão desta casa e assim é que estes celerados monges se aproveitam da boa fé do povo e da credulidade dos devotos. De resto, nada mais severo que os regulamentos de nossa conduta e nada mais perigoso para nós do que infringí-los no que quer que seja. É preciso que eu entre em detalhes sobre este assunto, continuou a minha instrutora, porque aqui de nada vale dizer: Não me castigue pela infração desta lei, pois eu a ignorava. É necessário, pois, instruir-se com as companheiras ou adivinhar tudo por si mesma. Não te previnem de nada, e punir-te-ão por tudo. A única correção admitida é o chicote. Um dos prazeres que tem esses celerados é o de punir. Castigar-te-ão por não teres cometido hoje nenhuma falta, ou por teres cometido alguma. Todos eles são dados a esta maneira de castigar e o oficio de punidor todos os quatro sabem exercer muito bem. Não se passa um dia sem que se chame o regente do dia, que é quem recebe os informes diários de cada quarto, quem se encarrega do policiamento no interior do serralho, de tudo o que ocorrer nos jantares em que somos admitidas, quem taxa as faltas e as pune. Recordemos cada um destes castigos. Somos obrigadas a estar lavadas e vestidas às nove horas da manhã. Aí pelas dez trazem pão e água para o desjejum. Às duas horas, servem o jantar, que consiste em uma sopa de legumes, às vezes algumas frutas e uma garrafa de vinho para nós quatro. Todos os dias, de Inverno a verão, nos vem regularmente visitar às cinco horas da tarde. É quando então recebe as delações da deã. E as queixas que esta possa fazer contra a conduta das mulheres do seu quarto, se estão ou não de bom humor, se se levantaram à hora certa, se estão corretas na toilette da cabeça e no asseio do resto do corpo, se comeram como devem e se não estão pensando em arquitetar alguma fuga. É necessário um relatório completo destas coisas e se não o fazemos seremos punidas. Então, o regente do dia vai até ao nosso toalete, passando em revista as diferentes coisas. Feita a sua tarefa, dificilmente o regente sai sem se divertir com uma de nós, ou, freqüentemente, com as quatro. Desde que ele se retira, e caso não seja o nosso dia de ir jantar, então podemos ler ou conversar, distrairmo-nos, e ir deitar quando bem entendermos. Se, ao contrário, for dia de ir jantar com os monges, toca uma sineta, que nos adverte ser hora de prepararmo-nos. O próprio regente nos vem buscar, vamos para a sala onde nos encontraste e ali chegando a primeira coisa a ser feita é a leitura do caderno das faltas que se cometeu desde a última vez que ali estivemos. Inicialmente as faltas cometidas no último jantar, ou seja, as negligências, a frieza diante dos monges na hora de os servir, falta de previdência, de submissão ou de asseio. A estas acrescentam as faltas cometidas no quarto durante os dois dias, conforme o informe da deã. As delinqüentes se põem no meio da sala, em círculo. O regente diz a falta e o castigo correspondente. Em seguida elas são despidas pela deã ou a subdeã no caso da primeira ter cometido a falta, e então o regente aplica a punição prescrita de maneira tão violenta que dificilmente alguém dela se esquece. Estes criminosos se conduzem com tanto artifício que não há um só dia em que não ocorram tais execuções. Acabada a primeira parte, então começam as orgias, impossível de serem contadas em todos os detalhes. Tão estranhos caprichos por acaso poderão ser regrados? O objetivo essencial é nada recusar... tudo prever, ainda que assim o faça, não se tem às vezes nenhuma segurança. Junta-se em meio à orgia. Somos admitidas nesta refeição, sempre mais apurada e suntuosa que as nossas. As bacanais têm início quando os monges começam a se embriagar. À meia-noite todos se separam e cada um pode levar uma de nós para passar a noite, indo esta favorita deitar-se na cela daquele que a escolheu, retornando à nossa convivência na manhã seguinte. As outras que voltam para os quartos, encontram estes limpos, as camas e os guarda-roupas arrumados. Pela manhã pode acontecer que, em se levantando antes da hora do desjejum, ocorra que um monge exija uma de nós na sua cela. O irmão que cuida de nós é que vem nos buscar, conduzindo-nos para a cela do monge que nos cobiça, o qual nos traz de volta ou nos faz conduzir pelo mesmo irmão caso ele tenha mais necessidade de nós. Este molosso que guarda os nossos quartos e algumas vezes nos conduz, é um velho de setenta anos, vesgo, troncho e mudo. Os outros o ajudam no serviço da casa: um prepara a comida, outro arruma as celas dos monges, varre toda a casa, e ajuda na cozinha, e o terceiro é o porteiro, que tu viste ao entrar. Destes todos, só vemos o que nos serve e a menor palavra a ele dirigida constitui um dos nossos crimes graves. o guardião algumas vezes vem nos visitar. Há, então, o uso de algumas cerimônias que a prática te ensinará e cuja inobservância constitui crime, porque cada dia eles aumentam a vigilância pelo prazer de punir pelo que não se cumpriu. Rafael sempre vem nos visitar com algum projeto, e estes são sempre ou cruéis ou irregulares, como terás oportunidade de constatar. Vivemos sempre trancadas, e em nenhuma ocasião do ano nos deixam tomar ar, embora haja um grande jardim. Mas por não ser provido de grades, teme-se uma fuga que seria muito perigosa, pois poder-se-ia fazer saber à justiça temporal ou espiritual de todos os crimes que aqui são praticados e aos quais se poderia por cobro. Para nós não há nenhum dever religioso. É-nos proibido falar ou pensar nisto, o que constitui uma das faltas mais suscetíveis de punição. Eis tudo o que posso dizer, minha cara companheira, acrescentou a nossa deã, e só a experiência poderá te ensinar o resto. Tem coragem, se possível for, e renuncia para sempre ao mundo, pois não há exemplo de uma mulher que desta casa tenha saído ter podido revê-lo.


Este último ponto me inquietou horrivelmente, e perguntei a Omphale qual era a sua verdadeira opinião sobre a sorte das mulheres ali encerradas.


- Que queres que eu te responda - disse-me - se a todas as horas a esperança destrói esta infeliz opinião? Tudo me prova que um túmulo nos serve de retiro e mil outras idéias que não são mais que filhas da esperança vem a todo instante destruir esta fatal convicção. Só pela manhã somos prevenidas do destino que pensam nos dar. O regente do dia vem antes do desjejum e diz, suponho: Omphale, arruma tua trouxa, o convento te dispensa ao anoitecer virei te buscar. Depois ele sai. A dispensada abraça suas companheiras, prometendo ser-lhes útil por mil modos diferentes, chora e promete divulgar o que se passa aqui: soa a hora, o monge vem, a mulher parte e nunca mais se ouve falar nela. No entanto, se for dia de ir jantar, tudo se passa como ordinário; a única diferença nestes dias é que os monges comem menos, bebem muito mais, mandam-nos deitar cedo e não levam nenhuma de nós para dormir. - Cara amiga - disse eu à deã agradecendo as suas Intenções - talvez não tenhas criado a não ser filhas que não possuem fôrça para te cumprir a palavra... Queres fazer comigo esta promessa mútua? Desde logo te juro, por tudo o que há no mundo de mais sagrado: ou morrerei ou destruirei estas infâmias. Por sua vez, promete-me também?


- Certamente - disse-me Omphale - mas fica certa da inutilidade dessas promessas. Mulheres mais velhas que tu, se possível talvez ainda mais irritadas, pertencentes a boas famílias da província e tendo assim mais armas que a que tu tens, mulheres, em suma, que teriam derramado seu sangue por mim, não puderam cumprir o mesmo juramento. Permite que, com minha experiência, te diga considerar em vão o que dissemos e não levá-lo a sério.



"A história de Justine"
Marquês de Sade