quarta-feira, 25 de junho de 2008

"Há lugar para os dois"


Há lugar para os dois
Marquês de Sade

Uma formosíssima burguesa da rua Saint-Honoré, de uns vinte anos de idade, roliça, gordita, de carnes frescas e apetecíveis, de formas bem torneadas ainda que abundantes e que unia a tantos atrativos a presença de ânimo, vitalidade e a mais intensa aficção a todos os prazeres que lhe vetavam as rigorosas leis do himeneu, havia decidido, há um ano aproximadamente, proporcionar duas ajudas a seu marido que, velho e feio, não só lhe causava asco mas que, para cúmulo, só raramente cumpria com seus deveras que, talvez um pouco melhor desempenhados poderiam acalmar a exigente Dolmène, que assim se chamava nossa burguesa. Nada melhor organizado que os encontros com seus dois amantes: Des-Roues, jovem militar, lhe tocava de quatro a cinco da tarde, e das cinco e meia às sete era o turno de Dolbreuse, jovem comerciante com a mais formosa figura que se podia contemplar. Resultava impossível fixar outras horas, eram as únicas em que a senhora Dolmène estava tranqüila: pela manhã tinha que estar na tenda, à tarde às vezes tinha que ir ali igualmente ou bem seu marido regressava e tinha de falar de seus negócios. Além disso, a senhora Dolmène havia confessado a uma amiga que ela preferia que os momentos de prazer se sucedessem assim, seguidos: o fogo da imaginação não se apagava desta forma - dizia - nada tão agradável como passar de um prazer ao outro, não cabia o fastio de voltar ao princípio, pois a senhora Dolmène era uma criatura encantadora que calculava ao máximo todas as sensações do amor, poucas mulheres analisavam como ela e graças a seu talento havia compreendido que os dois amantes valiam muito mais que um só; enquanto a reputação dava no mesmo, a gente podia se enganar, podia tratar sempre do mesmo que ia e vinha várias vezes ao dia, e no que toca ao prazer, que diferença!

A senhora Dolmène tinha um medo terrível da gravidez e convencida de que seu marido nunca cometeria com ela a loucura de estragar-lhe o corpo, havia calculado que com dois amantes havia menos perigo do que temia de um só, pois - dizia ela como boa anatomista - os dois frutos se destroem entre si.

Certo dia, a ordem dos encontros se alterou e nossos dois amantes, que nunca se tinham visto, se fizeram amigos de uma forma bem divertida, como vamos ver. Des-Roues era o primeiro, mas havia chegado demasiado tarde e, como se fosse coisa do diabo, Dolbreuse, que era o segundo, chegou um pouco antes.

O leitor inteligente se dará conta em seguida que a combinação desses dois pequenos erros devia causar um encontro inevitável, como de fato aconteceu. Mas mostremos como ocorreu e, se possível, aprendamos dele com todo o recato e comedimento que exige semelhante matéria, por si só muito licenciosa.

Por causa de um capricho bastante singular – e os homens são propensos a isso – nosso jovem militar, cansado do papel de amante, quis interpretar o de amada; em lugar de ficar amorosamente abraçado pelos braços de sua divindade, preferiu abraçá-la de outro modo, em uma palavra, o que devia ficar embaixo, ele pôs em cima e nesta troca de papéis quem se inclinava sobre o altar em que habitualmente tinha lugar o sacrifício era a senhora Dolmène, que nua como a Vênus Calipigia e estendida como estava sobre seu amante, estava em linha reta com a porta da habitação em que se celebrava o mistério, isso que os gregos adoravam com tanta devoção na estátua que acabamos de citar, essa região tão formosa, em uma palavra que, sem que tenhamos que ir demasiado longe para dar um exemplo, conta em Paris com tantos adoradores. Tal era sua postura quando Dolbreuse, que tinha o costume de entrar sem mais preâmbulos, abre a porta cantarolando e dá de frente com um panorama que, segundo se diz, uma mulher verdadeiramente honesta não deve nunca mostrar. O que havia cumulado de júbilo a tanta gente, fez retroceder Dolbreuse.
- Que vejo! Exclamou. Traidora... ! É isso, pois, o que me reservas?

A senhora Dolmène, que nesse preciso instante se encontrava numa dessas crises em que a mulher atua melhor do que raciocina, apressa-se em contestar semelhante pretensão:
- Que diabos te passa?- pergunta ao segundo Adônis sem deixar de entregar-se ao primeiro. Não vejo porque há de decepcionar-te; não nos moleste, amigo meu, e acomoda-te aqui, que podes; como bem podes ver, há lugar para os dois.

Dolbreuse, que não pôde conter seu riso ante o sangue frio de sua amante, compreendeu que o melhor era seguir seu conselho e não se fez de rogado e parece que os três ganharam com ele.