sábado, 2 de agosto de 2008

Queimar Sade? Parte V

DEVE-SE QUEIMAR SADE?
FAUT-IL BRÛLER SADE?
Simone de Beauvoir
1955

Parte V

Já tive ocasião de dizer que desconheceria o sentido e o alcance das singularidades de Sade, quem se limitasse a considerá-las simples dados; elas estão sempre carregadas de significação ética.

A partir do escândalo de 1763, o erotismo de Sade deixa de ser apenas uma atitude individual: é também um desafio à sociedade. Numa carta à esposa, explica como transformou seus gostos em princípios: Estes princípios e gostos foram por mim levados até o fanatismo — escreve ele — e o fanatismo é obra das perseguições dos meus tiranos. A intenção suprema que anima toda a atividade sexual é que ela se quer criminosa: crueldade ou imundície, trata-se de realizar o mal. Sade imediatamente experimentou o coito como crueldade, despedaçamento e crime; e, por ressentimento, reivindicou-lhe teimosamente o negrume; visto que a sociedade se alia à natureza para o querer criminoso em seus prazeres, ele fará do próprio crime um prazer. O crime é a alma da lubricidade. Que seria um gozo desacompanhado do crime? Não é o objetivo da libertinagem que nos move, é a idéia do mal. No prazer de torturar e injuriar uma bela mulher — escreve ele — há a espécie de prazer que dá o sacrilégio ou a profanação dos objetos oferecidos ao nosso culto.

Não foi por acaso que, para chicotear Rose Keller, escolheu o domingo de Páscoa; e foi no instante em que propôs ironicamente confessá-la que a sua excitação sexual atingiu o paroxismo; não há afrodisíaco mais poderoso que o desafio ao Bem: Os desejos que experimentamos pelos grandes crimes são sempre mais violentos, que os que experimentamos pelos pequenos.

Sade pratica o mal para se sentir culpado, ou escapa à culpabilidade assumindo-o? Reduzi-lo a qualquer dessas atitudes seria mutilá-lo; ele não assenta na abjeção complacente nem na imprudência estouvada; mas oscila contínua e dramaticamente, entre a arrogância e a má consciência.

Entrevemos, assim, o alcance da crueldade e do masoquismo de Sade. Este homem que aliava a um temperamento violento — logo enfraquecido, ao que parece — um “isolismo” afetivo quase patológico, procurou um sucedâneo da perturbação através das dores sofridas ou infligidas. Sua crueldade tem um sentido muito complexo. Em primeiro lugar, surge como a realização extrema e imediata do instinto do coito, sua assunção total; afirma a radical separação do outro objeto, e do indivíduo soberano, visa a destruição ciumenta do que se não pode avaramente assimilar, mas sobretudo, mais do que a coroar impulsivamente o orgasmo, tende de maneira premeditada a provocá-lo; permite apreender através do outro a unidade consciência-carne e projetá-la em si; enfim, reivindica livremente o caráter criminoso que a natureza e a sociedade consignaram ao erotismo. Por outro lado, fazendo-se sodomizar, flagelar, aviltar, Sade chega também à revelação de si mesmo como carne passiva; sacia o desejo de autopunição e aceita a culpabilidade a que o votaram, tornando logo da humildade ao orgulho pelo desafio. Na cena sádica completa, o indivíduo dá asas à sua natureza sabendo-a má, assumindo-a agressivamente como tal; confunde a vingança com o crime e transforma este em glória.

Há um ato que se propõe como a mais extremada realização simultânea da crueldade e do masoquismo, porque o indivíduo nele se afirma de maneira privilegiada como tirano e como criminoso: é o assassínio. Tem-se sustentado muitas vezes que ele constitui o supremo arremate da sexualidade sádica. A meu ver, essa opinião baseia-se num mal-entendido. Sem dúvida é com o fim apologético, que Sade em suas cartas se defende tão energicamente de nunca ter sido um assassino, mas penso que a idéia repugna-lhe sinceramente. É verdade que ele sobrecarrega seus relatos de monstruosas hecatombes, mas isso por não haver perversidade cuja significação abstrata apresente evidência tão fulgurante quanto o assassínio; ele representa a reivindicação exasperada de uma liberdade sem lei e sem temor. Além disso, o autor, prolongando indefinidamente no papel a agonia da sua vítima, pode eternizar o instante privilegiado em que um espírito lúcido habita um corpo que imaterialmente se degrada, insufla ainda um passado vivo no despojo inconsciente.

Mas, na verdade, que faria um tirano desse objeto inerte que é um cadáver? Naturalmente, há na passagem da vida para a morte qualquer coisa de vertiginoso, e o sádico a quem fascinam os conflitos da consciência e da carne, de bom grado se verá autor de tão radical metamorfose; mas, se é normal que ele realize na ocasião essa experiência privilegiada, não é possível que ela lhe proporcione a satisfação suprema; essa liberdade que se pretendia tiranizar até o aniquilamento, aniquilando-se deslizou para fora do mundo onde a tirania a dominava; se os personagens de Sade multiplicam indefinidamente as matanças, é porque nenhuma consegue satisfazê-lo; concretamente, elas não trazem qualquer solução para os problemas que atormentam o libertino, pois o fim que este persegue não é apenas o prazer; ninguém empreenderia tão apaixonada e perigosamente a busca de uma sensação, tivesse ela a violência de uma crise epiléptica; mais do que isso, o traumatismo final deve garantir, pela sua evidência, o êxito de uma empresa cujo risco o ultrapassa infinitamente; porém na maioria dos casos, ao contrário, ele a interrompe sem concluí-la, e, quando se prolonga por um assassínio, este apenas logra confirmar a derrota. Blangis estrangula com uma fúria que é a do próprio orgasmo, e há desespero nessa raiva em que o desejo se apaga sem saciar-se; os prazeres que ele premedita são menos selvagens e mais complexos. Entre outros, um episódio de Juliette é significativo; excitado pela conversa da jovem, Noirceuil que pouco apreciava os prazeres solitários, ou seja, aqueles a que a gente se entrega só com um parceiro, logo chamou os amigos. Nós não somos suficientes... Não, deixa-me... Minhas paixões concentradas num único ponto são como os raios do astro reunidos pela lente incendiadora, queimam logo o objeto sobre o qual incidem. Não é por escrúpulo abstrato que ele se proíbe tal excesso, é antes a certeza de que após o espasmo assassino achar-se-ia frustrado.

Carmen Hayes - Illustration from Juliette by the Marquis de Sade


Nossos instintos nos indicam fins impossíveis de alcançar se nos limitamos a seguir-lhes os impulsos imediatos; é preciso superá-los, refleti-los e inventar engenhosamente os meios de satisfazê-los. É a presença de consciências estranhas que nos ajudará a tomar, em relação a eles, o recuo necessário.

A sexualidade em Sade não é da competência da biologia: é um fato social. As orgias em que ele se compraz são quase sempre coletivas; em Marselha reclama duas mulheres e é acompanhado, pelo criado; em La Coste organizara um serralho e, nos seus romances, os libertinos formam verdadeiras comunidades. A vantagem consiste em primeiro lugar no número de combinações que assim se oferece aos seus desregramentos, mas essa socialização do erotismo tem razões mais profundas. Em Marselha chama ao criado “Senhor Marquês” e prefere vê-lo “conhecer” com o seu nome uma mulher a “conhecê-la” ele próprio; a representação da cena erótica tem mais interesse a seus olhos do que a experiência divina. Nas Journées de Sodome, os caprichos são quase sempre contados antes de postos em prática; por esse desdobramento o ato converte-se em espetáculo visto a distância no momento em que é executado; assim conserva a significação que um arrebatamento solitário e bestial obscureceria; porque se o devasso coincidisse exatamente com seus gestos, e a vítima com suas emoções, liberdade e consciência se perderiam no desvario da carne, sendo esta apenas sofrimento imbecil e aquele voluptuosidade convulsiva; graças aos testemunhos reunidos em torno deles, mantém-se uma presença que ajuda o indivíduo a estar ele próprio presente. É através das representações que Sade espera atingir-se, e para se ver é necessário ser visto; tiranizando uma vítima, ele é objeto para os que o observam; inversamente, contemplando numa carne que violenta as violências que ele suporta, recupera-se como indivíduo no seio da sua passividade; a confusão do para-si e do para outro se realiza. Os cúmplices são singularmente necessários para dotar a sexualidade de uma dimensão demoníaca; é por eles que o ato cometido ou suportado reveste uma forma segura em vez de se diluir em momentos contingentes; tornando-se real, toda perversidade se evidencia possível, comum, a gente familiariza-se tão intimamente com ele que se tem dificuldade em julgá-lo condenável; para se espantar, se apavorar, é necessário contemplar-se de longe, através de olhos alheios.

Mas este recurso a outrem, embora precioso, não basta ainda para suprimir as contradições que implica a tentativa sádica; falhando em apreender na experiência vivida a unidade ambígua da existência, jamais se conseguirá reconstruí-la intelectualmente. Por definição, uma representação nunca poderia coincidir com a intimidade da consciência nem com a opacidade da carne, e muito menos poderia reconciliá-las; uma vez dissociados, estes dois momentos da realidade humana opõem-se, e quando se persegue um, o outro furta-se. Se inflige sofrimentos demasiado intensos, o indivíduo desvaira-se, abdica, perde a soberania; um excesso de grosseria provoca o enjôo que contraria o prazer; a crueldade é praticamente difícil de exercer a não ser em limites muito modestos, e teoricamente implica uma contradição que traduz a destas duas passagens: Os atrativos mais divinos são nulos quando a submissão e a obediência no-los não vêm oferecer, e: Cumpre violentar o objeto do nosso desejo; o prazer é maior quando ele se rende. Onde encontrar assim livres escravos? A solução é recorrer ao compromisso; com mulheres estipendiadas e abjetamente concordantes, Sade ultrapassa um pouco os limites convencionados; contra uma esposa que guarda em sua obediência uma certa dignidade humana, ele permite-se algumas violências, mas o ato erótico ideal nunca será realizado. É este o sentido profundo das palavras que Sade coloca na boca de Jérôme: O que fazemos aqui não é sequer a imagem do que desejaríamos fazer.

Não que proezas verdadeiramente extraordinárias estejam praticamente proibidas, mas mesmo as que se poderiam evocar nos delírios mais extremos acabariam decepcionando o seu autor: Atacar o sol, privar dele o universo ou utilizá-lo para incendiar o mundo, isso sim, seriam crimes! Mas se este sonho parece apaziguador, é porque o criminoso nele projeta sua destruição juntamente com o universo; sobrevivendo, ele se encontraria frustrado. Nunca o crime sádico se evidenciaria adequado à intenção que o anima; a vítima nunca é mais que um análogo, o indivíduo apenas se realiza como imagem, e a relação de ambos não passa da paródia do drama que os poria realmente em luta na sua incomunicável intimidade; por isso o bispo das Cent vingt journées nunca cometia um crime sem conceber outro no mesmo instante. O momento da conspiração é para o libertino um momento privilegiado, porque ele pode ignorar então o desmentido que fatalmente lhe oporá a realidade; e se o relato desempenha nas orgias sádicas um papel primordial, despertando facilmente sentidos sobre os quais já não atuam os objetos de carne e osso, é porque estes não se deixam integralmente atingir senão em sua ausência. Com efeito, há apenas um modo de se satisfazer com os fantasmas que cria a devassidão: jogar com a própria irrealidade deles. Escolhendo o erotismo, Sade escolheu o imaginário; só no imaginário conseguirá instalar-se com segurança, sem arriscar decepções, como, aliás, o repete ao longo da sua obra: O gozo dos sentidos é sempre regido pela imaginação.

O homem só pode aspirar à felicidade utilizando todos os caprichos da imaginação. É por ela que escapará ao espaço, ao tempo, à prisão, à polícia, ao vazio da ausência, às presenças opacas, aos conflitos da existência, à morte, à vida e a todas as contradições. Não é pela crueldade que se realiza o erotismo de Sade: é pela literatura.

Pode parecer à primeira vista que Sade escrevendo outra coisa não fez mais do que reagir, como tantos outros, à sua situação de prisioneiro. A idéia não lhe era inteiramente estranha: uma das peças representadas em La Coste, em 1772, era sem dúvida de sua composição, e o cofre que a continha, arrombado graças à Mme de Montreuil, incluía, redigidas pela sua mão, certas “pequenas folhas” que eram provavelmente notas sobre a sexualidade; por outro lado esperou quatro anos, depois de preso em Vincennes, para empreender uma obra verdadeira. Em outro calabouço da mesma fortaleza, Mirabeau que também gemia: “Estou enterrado vivo num túmulo”, procurava, escrevendo, uma diversão: traduções, correspondência brejeira, ensaios sobre os mandatos de prisão, tentava simultaneamente matar o tempo, distrair a carne e minar a sociedade hostil; Sade obedece a motivos análogos, entretém-se, e mais de uma vez compondo seus romances acabou dando o seu safanão; também ele quer vingar-se dos seus carrascos; escreve à esposa com jovial azedume: Aposto que você imaginou fazer maravilhas reduzindo-me a uma abstinência atroz quanto ao pecado da carne. Pois bem, enganou-se... o que fez foi levar-me a criar fantasias que terei de realizar.

Mas se foi seu encarceramento que o levou a essa decisão, esta tem contudo raízes muito mais profundas. Sade sempre se contou histórias através dos seus desregramentos, mas a realidade que servia de modelo às suas fantasias, embora emprestando-lhes sua espessura perturbava-as também com suas resistências; a opacidade das coisas submerge-lhes as significações, e são estas, pelo contrário, que a palavra retém; uma criança já sabe que os rabiscos nas paredes são mais obscenos que os órgãos ou gestos que evocam, porque a intenção pornográfica neles se afirma em sua pureza; de todos os sacrilégios, a blasfêmia é o mais fácil e seguro; os personagens de Sade tagarelam incessantemente, e no caso de Rose Keller ele próprio se compraz em longos discursos. O escrever, melhor ainda que o falar, é suscetível de dar às imagens a solidez de um monumento, resiste a todas as contestações. Graças a ela, a virtude conserva seu funesto prestígio no instante em que é denunciada como hipocrisia e tolice; o crime em sua grandeza permanece criminoso; num corpo agonizante a liberdade pode ainda palpitar.

A literatura permite a Sade desencadear e fixar os seus sonhos, e também sobrepujar as contradições implícitas em qualquer sistema demoníaco; mais do que isso ela própria é um ato demoníaco, pois que exibe agressivamente fantasias criminosas; é isso que lhe empresta seu valor incomparável. Se acharmos paradoxal que um “isolista” tenha se comprometido tão apaixonadamente num esforço de comunicação, é porque compreendemos mal Sade; ele nada tem do misantropo que prefere à sua espécie os animais e as florestas virgens; separado dos outros, obceca-o essa inacessível presença; se no mais recôndito da sua vida reclama como testemunhas consciências estranhas, é natural que deseje expor-se diante do vasto público a que pode pretender um livro.

continua...