sábado, 2 de agosto de 2008

Queimar Sade? Parte IV

DEVE-SE QUEIMAR SADE?
FAUT-IL BRÛLER SADE?
Simone de Beauvoir
1955

Parte IV


Sade fez do erotismo o sentido e a expressão de toda a sua existência: não é, portanto, curiosidade ociosa tentar especificar-lhe a natureza. Dizer com Maurice Heine que ele tudo experimentou e tudo amou, é escamotear o problema; e a palavra algolagnia pouco nos adianta para a compreensão de Sade; ele tinha evidentemente uma idiossincrasia sexual bem definida, mas não é fácil apreendê-la; seus cúmplices e vítimas calaram-se; apenas dois escândalos ruidosos ergueram, rapidamente, a cortina atrás da qual se esconde habitualmente a devassidão; seus diários e memórias perderam-se, suas cartas são prudentes, e nos livros ele inventa-se mais do que se revela.

Concebi tudo o que se pode conceber nesse gênero, mas naturalmente não fiz tudo o que concebi nem com certeza o farei jamais
, escreveu ele; não foi sem motivo que se comparou à Psychopathologia Sexualis de Krafft-Ebing e ninguém pensaria em imputar a este todas as perversões que ele cataloga; do mesmo modo Sade estabeleceu sistematicamente, de acordo com as receitas de uma espécie de arte combinatória, um repertório das possibilidades sexuais do homem: é certo que não as viveu todas nem sequer as sonhou em sua própria carne.

Não só conta coisas demais, como na maioria das vezes conta mal. Seus relatos se parecem com as gravuras que ilustram Justine e Juliette na edição de 1797: a anatomia e as posições dos personagens são desenhadas com um realismo minucioso, mas a serenidade desajeitada e monótona dos rostos tornam perfeitamente irreais suas horríveis bacanais; através das frias orgias que o autor concerta é difícil discernir uma confissão viva. Contudo, há em seus romances situações que ele trata com especial complacência, testemunhando por alguns dos seus heróis uma simpatia toda particular; a Noirceuil, Blangis, Gernande e, sobretudo, a Dolmancé ele emprestou muitos de seus gostos e idéias. Por vezes também numa carta, num incidente, no rodeio de um diálogo, irrompe uma frase imprevista e viva que não é o eco de qualquer voz estranha. São essas cenas, esses heróis e esses textos privilegiados que cumpre interrogar.

Popularmente, sadismo significa crueldade; fustigações, sangrias, torturas, mortes: o primeiro traço que fere na obra de Sade é realmente o que a tradição associou ao seu nome. O episódio de Rose Keller no-lo mostra chicoteando sua vítima com disciplinas e uma corda nodosa, e sem dúvida(6) picando-a de canivetadas e derramando-lhe cera nas escoriações; em Marselha saca da algibeira um chicote de tiras de pergaminho com alfinetes entortados nas pontas e pede que lhe tragam varas de urze; em toda a sua conduta com a esposa manifesta evidente crueldade mental. De resto, exprimiu com abundância do prazer que se pode experimentar fazendo sofrer os outros; mas, quando se contenta em reeditar a clássica doutrina dos espíritos animais, esclarece-nos pouco: Trata-se, apenas, de abalar a massa dos nossos nervos pelo choque mais violento possível; ora, não há dúvida de que a dor atuando muito mais intensamente que o prazer, os choques resultantes sobre nós dessa sensação produzida nos outros serão essencialmente de uma vibração mais forte.

Sade não dissipa o mistério por que a violência de uma vibração se torna consciência voluptuosa. Felizmente, esboça alhures explicações mais sinceras. O fato é que a intuição original, a partir da qual se elaborou toda a sexualidade, e, portanto, toda a ética de Sade, é a identidade fundamental entre o coito e a crueldade. Seria a crise de voluptuosidade uma espécie de raiva se a intenção desta mãe do gênero humano não residisse em ser o tratamento do coito o mesmo da cólera? Qual é o homem bem constituído... que não deseja... molestar o seu gozo, então? Na descrição que nos dá do Duque de Blangis à beira do orgasmo, devemos sem dúvida ver uma transposição para o modo épico dos costumes do autor: Gritos pavorosos, atrozes blasfêmias lhe escapavam do peito inchado, seus olhos pareciam despedir chamas, espumava, relinchava..., chegava mesmo a estrangular.

O próprio Sade, de acordo com o depoimento de Rose Keller, “se pôs a dar gritos agudos e medonhos” antes de cortar as cordas que imobilizavam sua vítima. A carta “Baunilha e manilha” confirma que ele experimentou o orgasmo como uma crise semelhante à epiléptica, agressiva e assassina como a raiva.

Como se explica esta singular violência? Tem-se perguntado se de fato Sade não seria sexualmente débil; muitos dos seus personagens — Gernande entre outros, tão do seu agrado — são mal servidos, têm grande dificuldade na ereção e na ejaculação; provavelmente Sade conheceu esses pavores; mas é o excesso de devassidão que parece tê-lo levado a essa semi-impotência, que é também o caso de numerosos dos seus libertinos; entre estes, aliás, muitos são bem dotados e Sade alude com freqüência ao vigor do próprio temperamento. Pelo contrário, a aliança de apetites ardentes com um “isolismo” afetivo radical é que se me afigura a chave do seu erotismo.

Desde a adolescência até suas prisões, Sade conheceu sem dúvida de maneira premente, até mesmo obsedante, as solicitações do desejo; em compensação há uma experiência que ele parece absolutamente ignorar: a da perturbação. Nunca a voluptuosidade surge em seus relatos como esquecimento de si, delíquio, abandono; comparem-se, por exemplo, as efusões de Rousseau com as frenéticas blasfêmias de um Noirceuil, de um Dolmancé, ou na Religiosa de Diderot as emoções da Superiora com os prazeres brutais das tríbades de Sade. No herói sádico, a agressividade do macho não é atenuada pela comum metamorfose do corpo em carne; nem um momento ele se perde em sua animalidade: permanece tão lúcido e tão cerebral que, em vez de o perturbarem em seus arrebatamentos, os discursos filosóficos são para ele um afrodisíaco. Naquele corpo frio, tenso, rebelde a todo enfeitiçamento, concebe-se que o desejo e o prazer se desencadeiem em crise furiosa: fulminam-no como uma espécie de acidente orgânico em vez de constituírem uma atitude vivida na unidade psicofisiológica do indivíduo. Graças a esse exagero, o ato sexual cria aquela ilusão de gozo soberano que o torna aos olhos de Sade o prêmio incomparável; mas falta-lhe uma dimensão essencial cuja ausência o sadismo se esforçará por compensar. Pela perturbação, a existência é empreendida em si e no outro ao mesmo tempo como subjetividade e passividade; através dessa unidade ambígua os dois comparsas se confundem; cada qual fica liberto da sua própria presença e atinge uma comunicação imediata com o outro. A maldição que pesa sobre Sade — e que só sua infância nos poderia explicar — é esse autismo que o impede de jamais se esquecer e de jamais realizar a presença de outrem.

Se ele houvesse sido de temperamento frio, nenhum problema teria surgido; mas há instintos que o lançam para esses objetos estranhos aos quais é incapaz de se unir: precisa inventar maneiras singulares de apreendê-las. Mais tarde, quando seus desejos se embotarem, continuará a viver nesse universo erótico que pela sensualidade, pelo tédio, pelo desafio e pelo ressentimento se tornou o único válido a seus olhos: e suas manobras terão por fim, então, provocar a ereção e o orgasmo. Porém, mesmo no tempo em que estes lhe eram fáceis, Sade necessitava de rodeios para dar à sua sexualidade a significação que nela se esboçava sem chegar a completar-se: a evasão de sua consciência para sua carne, a apreensão do outro como consciência através da carne.

Normalmente, é pela vertigem do outro feito carne que cada qual se enfeitiça em sua própria carne. Se o indivíduo permanece fechado na solidão da sua consciência, escapa a essa perturbação e apenas consegue unir-se ao outro por meio de representações; um amante cerebral e frio espia avidamente o gozo da amante, e necessita afirmar-se como autor dele por não dispor de outro meio de atingir sua própria condição carnal; podemos qualificar de sádica esta conduta que compensa a separação por uma tirania refletida. Sade sabe, como vimos, que infligir o prazer pode ser um ato agressivo, e seu despotismo tomou por vezes esse aspecto; mas ele não o satisfaz. Em primeiro lugar repugna-lhe essa espécie de igualdade que cria uma voluptuosidade comum: Se os objetos que nos servem gozam, ei-los desde logo muito mais preocupados consigo mesmo do que conosco, e o nosso gozo, portanto, contrariado. A idéia de ver outro gozar como ele, leva-o a uma espécie de igualdade que prejudica os indizíveis encantos que o despotismo proporciona então. E, de maneira ainda mais categórica, declara: Todo o gozo partilhado se enfraquece.

Além disso, as sensações agradáveis são demasiado benignas; é dilacerada e sangrenta que a carne se revela como carne da maneira mais dramática. Nenhuma espécie de sensação é mais ativa e mais incisiva que a da dor: suas impressões são firmes.

Mas, para que através dos sofrimentos infligidos eu me torne também carne e sangue, é necessário que na passividade do outro eu reconheça minha própria condição, portanto que uma liberdade e uma consciência o habitem. O libertino seria realmente digno de lástima se agisse sobre um objeto inerte que nada sentisse. Eis por que as contorções e queixumes da vítima são indispensáveis à felicidade do carrasco: a ponto de Verneuil cobrir a esposa com uma espécie de touca que lhe ampliava os gritos; em sua revolta o objeto torturado afirma-se como meu semelhante e eu atingi, por seu intermédio, aquela síntese do espírito e da carne que a princípio se recusara.

Se o fim almejado é ao mesmo tempo escapar de si próprio e descobrir a realidade das existências alheias, há ainda outro caminho que se abre: fazer-se molestar por outrem. Sade não o ignora de modo algum e usa em Marselha chicotes e vergastas, tanto para flagelar como para se fazer flagelar; trata-se, sem dúvida, de uma das suas práticas mais comuns e todos os seus personagens se fazem alegremente chicotear: Ninguém duvida hoje de que a flagelação tenha um efeito decisivo na restauração do vigor extinto pelo excesso de voluptuosidade.

Há outra maneira ainda de realizar a passividade: em Marselha, Sade faz-se sodomizar por seu criado Latour, que parece muito acostumado a prestar-lhe esse gênero de serviço; seus heróis imitam-no à porfia; e ele declarou abertamente, nos termos mais vivos, que o auge do prazer se alcança combinando a sodomia ativa e passiva. É essa a perversão de que fala com maior freqüência e agrado, até mesmo com apaixonada veemência.

Para quem gosta de classificar os indivíduos com etiquetas bem definidas, propõem-se desde logo duas perguntas: Sade seria sodomita? Seria no fundo masoquista? No que concerne à sodomia, seu aspecto físico, o papel desempenhado por seus criados, a presença em La Coste do lindo secretário iletrado, a enorme importância que em seus escritos concede a essa fantasia e o ardor de suas justificativas, tudo confirma ser esse um dos aspectos essenciais da sua sexualidade. Sem dúvida as mulheres desempenharam grande papel tanto em sua vida como em sua obra; ele freqüentou numerosas prostitutas, manteve a Beauvoisin e outras amantes de menor importância, seduziu a cunhada, reuniu mulheres e moçinhas no solar de La Coste, flertou com Mlle Rousset e acabou seus dias ao lado de Mme Quesnet, sem falar dos laços impostos pela sociedade, embora alterados a seu modo, que o uniam a Mme de Sade. Porém, que relações teve com elas? É de notar que nos dois únicos testemunhos recolhidos sobre sua atividade sexual não se percebe que Sade tenha “conhecido” normalmente suas companheiras; no caso de Rose Keller saciou-se chicoteando-a, mas não lhe tocou; à prostituta de Marselha propôs deixar-se “conhecer por trás” pelo seu criado, ou então por ele; como a mulher recusasse, limitou-se a alguns contactos, enquanto se fazia “conhecer” por Latour. Seus personagens divertem-se de bom grado em deflorar moçinhas: esta violência sangrenta e sacrílega lisonjeia a imaginação de Sade; mas, mesmo quando pervertiam uma virgem, preferiam, no mais das vezes, tratá-la como a um rapaz do que fazer correr seu sangue; vários dos seus personagens manifestam profunda repugnância pela “frente” das mulheres; outros são mais ecléticos, mas não deixam dúvidas sobre suas preferências. Sade jamais gabou essa parte do corpo feminino que As Mil e Uma Noites tão jovialmente celebram; manifesta apenas desprezo pelos pobres efeminados que possuem normalmente suas esposas. Teve filhos com a mulher, mas já vimos em que condições; e dadas as singulares farras a que se entregava em La Coste, quem prova que ele próprio tenha engravidado Nanon? Naturalmente, não poderíamos atribuir a Sade as opiniões que professam em seus romances os pederastas especializados; mas o argumento que ele põe na boca do bispo das Journées de Sodorne está bastante próximo da sua alma para que o possamos considerar uma confissão; no que respeita ao prazer, diz ele: O rapaz é muito melhor que a moça; considerai-o pelo lado do mal, que é quase sempre o verdadeiro atrativo do prazer; o crime parecer-vos-á maior com um ser inteiramente da vossa espécie do que com um que o não é, e desde esse momento o gozo será dobrado.

Pouco importa que Sade tenha escrito à esposa que o seu único erro foi amar demais as mulheres; trata-se de carta oficial e hipócrita; e é por uma dialética romanesca que ele lhes dá em seus livros os papéis mais triunfantes: a maldade estabelece nelas impressionante contraste com a doçura tradicional do seu sexo; quando superam pelo crime sua abjeção natural, demonstram, com mais espalhafato que os homens, que nenhuma situação poderia impedir a explosão de um temperamento audacioso; e se imaginariamente se tornam os carrascos mais magníficos, é porque na realidade são vítimas natas: servis, lamurientas, mistificadas, passivas, através de toda a obra salientam o desprezo e a repugnância que na verdade causavam ao autor. Seria a mãe que Sade detestava nelas? Podemos também perguntar se o marquês não odiaria esse sexo por considerá-lo não o seu complemento, mas o seu duplo, e do qual nada podia receber; seus grandes celerados têm mais calor e vida que seus outros heróis, não só por motivos estéticos, mas porque lhe são mais próximos. Não creio de modo algum, que esteja retratado, como se pretendeu, na choramingas Justine; mas Juliette, que sofreu os mesmos tratos que a irmã em seu orgulho e prazer, retrata-o certamente. Sade sente-se mulher e ofende-o nas mulheres não serem o macho que ele deseja: à maior e mais extravagante de todas, a Durand, dota-a de um clitóris gigantesco que lhe permite comportar-se sexualmente como um homem.

É impossível especificar em que medida as mulheres foram para Sade outra coisa que sucedâneos ou joguetes, mas o que estamos no direito de afirmar é que sua sexualidade era essencialmente anal. O apego de Sade ao dinheiro confirma-o; as histórias de caça a heranças representaram papel enorme em sua vida; o roubo surge em sua obra como uma conduta sexual cuja evocação basta para provocar o orgasmo. E se se recusa a interpretação freudiana da cupidez, há um fato inequívoco que Sade abertamente reconheceu: sua coprofilia. Em Marselha oferece pílulas a uma mulher dizendo-lhe “que isso a excitaria a soltar gases”, e mostra-se decepcionado por não recolher o benefício previsto; é de admirar que os dois caprichos sobre os quais tentou explicar-se mais profundamente sejam a crueldade e a coprofagia. Até que ponto se lhe entregava? Há muita distância entre as práticas esboçadas em Marselha e às orgias excrementícias das Journées de Sodome; mas a importância que concede a estas, o cuidado com que lhes descreve os ritos e sobretudo os preparativos, provam que não se trata aqui de frias invenções sistemáticas senão de fantasmas afetivos. Por outro lado, a extraordinária bulimia de Sade prisioneiro não poderia explicar-se apenas pela ociosidade; comer só pode ser um substituto da atividade erótica quando permanece como equivalência infantil entre as funções gastro-intestinais e as funções sexuais, o que certamente se perpetuou em Sade; ele liga estreitamente a orgia alimentar à orgia erótica: Não há paixões que melhor se aliem à luxúria do que a bebedeira e a glutoneria, observa; e esta confusão acaba-se nos fantasmas de antropofagia: beber sangue, engolir esperma e excrementos, comer crianças, é saciar o desejo pela aniquilação do seu objeto; o gozo não comporta troca, dom, reciprocidade ou gratuita magnificência: seu despotismo é o da avareza que opta por destruir o que não pode assimilar.

A coprofilia de Sade tem ainda outro sentido: Se é a coisa suja que mais agrada no ato de lubricidade, quanto mais essa coisa for suja, mais deve agradar. Entre os atrativos sexuais mais evidentes, Sade coloca a velhice, a feiúra, o fedor; esta ligação da porcaria com o erotismo é nele tão original quanto a da crueldade e explica-se de maneira análoga. A beleza é demasiado simples, apreendemo-la por um julgamento intelectual que não arranca a consciência à sua solidão nem o corpo à sua indiferença; ao passo que a porcaria avilta; o homem que vive na porcaria, como aquele que fere ou se deixa ferir, realiza-se como carne; é na sua desgraça e na sua humilhação que esta se torna um abismo onde se submerge o espírito e onde se reúnem os indivíduos separados; zurzido, penetrado, esporcalhado, só desse modo Sade consegue abolir sua presença obsedante.

Todavia ele não é masoquista no sentido popular da palavra; zomba rudemente dos homens que se tornam escravos de uma mulher. Abandono-os ao vil prazer de carregar as algemas com que a natureza lhes dá o direito de subjugar os outros; que esses animais vegetem na baixeza, que os avilta. O universo do masoquista é mágico, e daí por que é quase sempre fetichista; os objetos, sapatos, peles, chicotes — estão carregados de eflúvios que têm o poder de o transformar em coisa; e é isso o que ele explicitamente procura: abolir-se tornando-se objeto inerte.

O mundo de Sade é essencialmente racional e prático; os objetos — materiais ou humanos — que servem a seus prazeres, são utensílios sem mistério, e ele vê claramente na humilhação um ardil orgulhoso; Saint-Fond, por exemplo, declara: A humilhação de certos atos de libertinagem serve de pretexto ao orgulho. E em outro ponto Sade diz do libertino que o estado de aviltamento que caracteriza aquele em que o mergulhais castigando-o, agrada-lhe, diverte-o, deleita-o e ele goza consigo mesmo o ter ido bastante longe para merecer um tratamento assim.

Há, no entanto, entre essas duas atitudes um íntimo parentesco; se o masoquista quer perder-se, é para fascinar-se pelo objeto com que pretende confundir-se, e este esforço o reconduz à sua subjetividade; exigindo que o parceiro o maltrate, tiraniza-o; suas exibições humilhantes, as torturas sofridas, também humilham e torturam o outrem; inversamente emporcalhando e ferindo, o carrasco emporcalha-se e fere-se, participa dessa passividade que ele revela e, procurando apreender-se como causa dos tormentos que inflige, é enquanto instrumento, portanto como objeto que ele se atinge; estamos, portanto, autorizados a unificar estas condutas sob a designação de sadomasoquismo; resta apenas considerar que, a despeito da generalidade do termo, elas podem concretamente oferecer grande diversidade. Sade não é Sacher Masoch. O que o caracteriza especialmente é a tensão de uma vontade que se aplica a realizar a carne sem se perder nela. Em Marselha, ele faz-se chicotear, porém, de vez em quando, corre até a estufa e marca à faca, no tubo, o número de chicotadas que acaba de receber: a humilhação volve-se imediatamente em fanfarronada; sodomizado, fustiga ao mesmo tempo uma mulher; e é essa uma de suas fantasias favoritss: zurzido e penetrado, zurzir e penetrar no mesmo instante uma vítima submissa.

6.As confissões de Sade não corroboram neste ponto o depoimento de Rose Keller.

continua...